Memória das Estrelas sem Brilho
CAPÍTULO XXII (extracto)
No dia na nossa chegada a Enguinegatte, a madame Constance obrigou-nos a tomar banho. O Rato desenrascou-se como pôde num alguidar de água quente e eu tive o privilégio da banheira. A madame deixou-me à vontade. Só depois de eu sair da água, me secar a uma toalha e vestir uma farda mais ou menos limpa, é que ela entrou no quarto para recolher a roupa suja. Como desse conta de que a que eu vestira não estava nas melhores condições de limpeza, achou por bem emprestar-me alguma roupa civil do marido. Eu disse-lhe que não podia, pois o regulamento militar obrigava-me a andar sempre fardado.
– Dentro de casa ninguém o vê. Que importância tem? Amanhã lavarei todo o seu fardamento.
Mesmo assim, eu tentei explicar-lhe que era arriscado. Podia alguém ver-me e pensar que eu era algum desertor.
– Ninguém o verá, esteja descansado.
Obrigou-me a despir a farda diante dela e, em ceroulas, vestir umas calças, uma camisa e um colete que entretanto fora buscar a outra divisão da casa.
– As calças são um pouco largas para si. O meu marido era um pouco mais forte.
– Já teve notícias dele? – perguntei enquanto apertava os botões da carcela.
– Não.
– Lamento. Ele desapareceu há quanto tempo?
– Não sei nada dele há mais de quinze meses. Os soldados que são feitos prisioneiros levam, segundo me contaram, dois a três meses a contactar a família através da Cruz Vermelha, que é, ao que parece, a única organização a que os boches permitem a entrada nos campos de concentração.
Eu gostaria de lhe ter dito algo simpático. Mas que haveria de dizer a uma mulher que perdeu o marido?
– Sabe o que mais me entristece, monsieur Vasques? É eu não poder fazer o luto a que estou obrigada. É muito triste uma pessoa desaparecer na guerra. Não há túmulo onde a chorarmos e onde colocarmos flores quando sentimos falta dela. E depois, é a ténue esperança de um dia a pessoa voltar, mesmo sabendo que isso é impossível. Mas não vamos falar de coisas dolorosas. Os nossos amigos vieram visitar-nos e desejam caras alegres.
A madame Constance juntou a roupa num braçado e, antes de sair, acrescentou:
– Daqui a dez minutos servimos o jantar.
Quando desci, fui encontrar o Rato a argumentar com a madame Léonor. Tentava explicar à velhota que não podia sentar-se à mesa da sala de jantar. Que o lugar dele era na cozinha ao pé dos gatos. A velhota repetia mais non, mais non, e apontava um lugar na mesa.
– Deixa-te de cerimónias e senta-te – ordenei eu ao Rato.
Ele sentou-se ao meu lado um tanto encavacado. Pegou no guardanapo que estava ao lado do prato e atou-o atrás do pescoço com um nó à laia de babeiro que se põe às crianças para comer a sopa. Eu dei-lhe uma cotovelada e fiz questão que ele reparasse no meu, estendido sobre os joelhos.
– Francesices – murmurou ele enquanto tentava desatar o nó cego que tinha dado.
O que é certo é que eu fiquei satisfeito por tê-lo a meu lado.
Embora ali recebêssemos muito mais do que pudéssemos dar, levámos uma garrafa de vinho, bolachas e umas quantas latas de fruta em conserva. A fruta fez as delícias dos miúdos, mais por ser uma novidade do que pela especialidade culinária.
À sobremesa, a madame Constance contou-nos que a aldeia ficara bastante sossegada depois da partida das tropas portuguesas. Isso era bom por um lado, mas mau por outro. A presença das tropas dava alguma animação. Havia mais comércio e os soldados ajudavam nos trabalhos agrícolas.
Mas também havia menos prostituição e menos desacatos, acrescentou a madame Léonor. Os portugueses eram em geral bons rapazes, melhores do que os ingleses sem dúvida. Os ingleses, quando se embebedavam, partiam tudo e insultavam toda a gente na língua lá deles. Mas não se podia pedir que os soldados, fossem portugueses ou ingleses, se comportassem como santos de altar. Tanto mais que estávamos numa guerra.
Após o jantar, o François foi autorizado a colocar um disco no gramofone. A voz saltitante de um cantor francês da moda saiu da enorme boca do aparelho que não tocava desde há longos meses. A Nannette agarrou as mãos do François e puseram-se os dois a dançar ou pouco ao calha. Mas os dois miúdos estavam demasiado cansados devido à apanha das batatas e, meia dúzia de pinotes depois, pararam e sentaram-se. Não eram apenas eles que estavam cansados. Todos estávamos e por isso despedimo-nos e fomos para a cama. O Rato teve de ir dormir ao celeiro, pois não havia lugar para ele na casa. Pareceu não se importar muito com isso. Era a primeira noite desde há quase dois meses que dormíamos sem o receio de uma granada ou um obus nos cair em cima.
Eu deitei-me na cama já minha conhecida. Fiquei, aconchegado num cobertor, a sentir o conforto da roupa lavada, da moleza do colchão e da macieza do travesseiro. A guerra era um rugido longínquo, como a vibração dos tambor dos Zés Pereiras nas festas de São João na Avenida Central em Braga. Da janela do escritório do meu pai, sito na Rua do Souto, eu tentava perceber donde vinha a atoarda.
Fechei os olhos e deixei que o torpor me invadisse o corpo. Imaginei-me no meu quarto da Quinta de São Francisco, nos tempos da adolescência. Procurei-me e com volúpia fui-me acarinhando, coisa que eu não fazia desde os quinze ou dezasseis anos. Estava eu nisto, quando senti alguém discretamente bater à porta. Em voz quase apagada, perguntei quem era.
– Constance – ouvi dizer de fora em voz sumida.
Fiquei atrapalhado, sem saber se deveria erguer-me da cama, se simplesmente mandá-la entrar. Contra as regras de etiqueta, decidi mandá-la entrar. Eu não podia sair da cama no estado em que me encontrava. Que iria ela pensar ao ver uma coisa pontiaguda sob as ceroulas?
A Madame Constance entrou com um castiçal na mão e fechou a porta atrás de si. Eu soergui-me, mas ela disse-me para eu me deixar estar. Ainda bem, pensei.
– Desculpe se o acordei.
– Não se preocupe, ainda não estava a dormir. Aconteceu alguma coisa?
– Fui deitar-me, mas não conseguia adormecer. E então pensei... pensei que talvez não se importasse de eu vir conversar consigo um pouco.
– Oh, claro que não me importo. Mas sente-se, fique à vontade – pedi eu apontando-lhe uma beira da cama.
– Não tenho muita oportunidade para conversar. Os homens, ou morreram, ou desapareceram. Ficou em Enguinegatte o maire, um velho troublé. A conversa entre mulheres também enfada. As crianças não compreendem e nós também não podemos atemorizá-las com as nossas preocupações e os nossos medos.
– Somos amigos, madame.
– Monsieur Vasques, vous êtes très gentil.
Sentada na beira da cama, a madame falou durante cerca de uma hora. Falou do marido, da guerra, dos irmãos que morreram a defender a sua terra, das canseiras da quinta, da educação dos filhos, do futuro incerto, da sua tristeza de viúva putativa, da falta que lhe fazia o marido, do preço das batatas, do cavalo que o exército francês lhe levou por causa da requisição de muares decretada pelo governo, do marido mais uma vez e da mágoa por, muito provavelmente, não voltar a vê-lo, de não ter sido a melhor esposa quando ele estava em casa, vivo e de saúde.
Estava eu entre o sono e o esforço de lhe dar atenção, quando ela começou a chorar baixinho. A vela no castiçal poisado na mesa-de-cabeceira estava quase no fim e a cera que se desprendia do pavio rechinava.
Eu inclinei-me para a madame, puxei-a para mim e abracei-a. Depois afastei o cobertor e dei-lhe espaço na cama a meu lado. Adormecemos abraçados um ao outro sem que nada mais acontecesse. Quando de manhã acordei, encontrava-me sozinho. Levantei-me, abri as portadas da janela e constatei que a manhã ia adiantada. Havia um estranho silêncio na casa que me fez perguntar onde todos se teriam metido. Vesti a roupa de monsieur Gavroche, e desci. Na sala de jantar estava a mesa posta para o pequeno-almoço com um pires e uma chávena, pão cortado numa cesta de vime e um bule com leite frio. Não me recordo se havia manteiga, queijo ou compota. É provável que sim, mas não estou seguro. Fui à cozinha e sobre o fogão de ferro encontrava-se um bule de café quente. Levei-o para a mesa, sentei-me e servi-me do que havia.
Talvez, pensei, tenham ido todos para o campo apanhar batatas.
Depois de comer, saí à porta da cozinha e chamei pelo Rato. Como não obtivesse resposta, aventurei-me alguns metros pelo jardim, até ter vista sobre o batatal. Tudo estava silenciosos e deserto. O cão da quinta, que tinha o tamanho de um cão de quarto e cuja raça era conhecida entre a tropa portuguesa como lambe-criquas, aproximou-se das minhas pernas de rabo a abanar e pôs-se a cheirar-me as calças. Talvez na roupa que eu vestia ele tivesse identificado o cheiro do dono. Dobrei-me e fiz-lhe uma festa no focinho cabeludo. Perguntei-lhe se sabia onde se tinham metido todos. O cão abriu a boca ensonado, cheirou mais uma vez as calças, virou costas e foi alapar-se à entrada da quinta, em provável trabalho de guarda que o instinto, o dever de cão ou a escala de serviço exarada por qualquer deus canino lhe ordenava que cumprisse.
Voltei para dentro, não fosse alguém ver-me da estrada em roupas civis, e sentei-me à mesa da sala de jantar. Afastei a chávena vazia e escrevi uma carta aos meus pais. Tinha muito para dizer, mas muito pouco que poderia dizer. Eu censurava as cartas aos soldados e, como não tinha um censor acima de mim, obrigava-me, em consciência, à autocensura. Escrevi uma página, se tanto, a dizer vulgaridades, que tudo estava bem, que não precisavam de se preocupar, que a guerra estava por dias e que depressa nos voltaríamos a ver. Rematava, pedindo que me enviassem um livro de astronomia que contivesse o mapa das constelações. Pretendia ocupar as noites longas de serviço à trincheira a identificar as estrelas da Via Láctea.
Depois de terminada a carta, deambulei pela casa. Encontrei no armário das loiças vários álbuns de fotografias e pus-me a folheá-los. Alguns deviam ter mais de cinquenta anos, o que para mim era espantoso. Em Portugal, no século XIX, apenas os ricos e os famosos é que se davam ao caríssimo luxo de se mandarem fotografar. Na França, ao que parecia, era bastante comum as famílias tirarem fotografias em ocasiões especiais, como baptizados, primeira comunhão, casamentos e funerais. Um dos álbuns que encontrei era inteiramente dedicado aos funerais das pessoas da casa. Quando alguém falecia, a família chamava o fotógrafo. Era tirado o retrato ao morto antes de ser colocado no caixão. O morto era lavado e vestido e, se fosse preciso, maquilhado. No álbum que eu folheei, os falecidos apareciam deitados na cama com as mãos no peito ou sentados numa cadeira como se estivessem vivos. No momento, achei aquilo macabro. As fotos, penso-o agora, eram a última recordação do ente querido que abandonara este mundo. Se me perguntassem no entanto se eu gostaria de ter uma fotografia dos meus pais em rigor mortis, eu diria que não. Cada homem está sujeito à cultura onde nasceu e foi criado e é com os olhos desfocados por essa mesma cultura que vê e julga a cultura dos outros. Se os alemães tivessem sabido isso, ou pelo menos ponderado sobre isso, talvez não considerassem os outros povos inferiores e não lhes quisessem impor a sua Kultur à força. Talvez a utilizassem para construir um mundo mais justo e mais seguro.
Folheei o álbum dos mortos até ao fim. As sete últimas folhas estavam vazias. Nelas não constariam os dois irmãos da madame Constance e o marido, engolidos pelo ferro e o fogo da guerra.
Ia a pegar noutro álbum, quando ouvi o cachorro a ladrar. Fui à janela e vi aproximar-se a gente da casa e o Rato. Só nessa altura é que me lembrei de que era domingo e tinham ido todos à missa. A madame Constance pediu-me desculpa por não me ter acordado. Entendeu por bem deixar-me pôr o sono em dia. O Rato, madrugador, ofereceu-se para as acompanhar à igreja e foi assim que fiquei sozinho.
O resto da manhã foi bastante animado. Enquanto as senhoras preparavam o almoço e organizavam as lides domésticas, eu e o Rato encarregámo-nos de algumas reparações. Ao domingo não se faziam trabalhos no campo. Ali levava-se muito a sério o dia de descanso por Deus estabelecido desde o princípio do mundo. Mas estavam convencionalmente permitidos pequenos trabalhos caseiros, como reparações, amanho do jardim, lavagem de roupa e limpezas.
Depois do almoço, eu e o Rato continuámos o trabalho de reparações. A madame Constance aproveitou para me lavar a minha roupa e a do Rato, que estendeu numa corda por detrás da casa. A tarde esteve ensolarada e uma brisa ligeira permitiu que toda ela ficasse enxuta ao cair da tarde.
Enquanto reparávamos o telhado do alpendre da casa, com a madame Constance a alguns metros a esfregar as peças de fardamento num lavadouro de madeira estriado e embutido numa tina de zinco, o Rato disse-me a meia voz:
– A madame hoje anda muito contente.
– É da nossa visita.
– Da minha é que não é, de certeza.
– Que queres dizer com isso?
– Ela não tira os olhos do meu alferes.
– Que disparate!
– Quando fomos à missa, fez-me umas perguntas sobre si.
– E que lhe disseste?
– Que lhe havia de dizer? Não percebi bem as perguntas. O meu alferes sabe que eu não pesco grande coisa do palavreado dos franceses.
– E então como sabias que as perguntas eram sobre mim?
– Monsieur Vasques não é difícil de perceber. E ela repetiu o nome várias vezes. Eu, para não ficar calado, disse-lhe: Monsieur Vasques très bon homme! Pela maneira como ela sorriu, deve ter percebido o que eu disse. E agora que, está ali a lavar, não tira os olhos do meu alferes.
– Vais ver que é de ti que ela os não tira.
– Qual quê? Ela sabe muito bem que eu sou casado e pai de filhos. No meu entendimento, ela gosta do meu alferes.
– Não digas tolices. Ela é uma mulher casada, com o marido desaparecido, e tem sofrido muito.
– Desaparecido, diz o meu alferes, e muito bem. Se ela não tivesse um fraquinho por si, acha que o convidava para cá vir e lhe fazia estes paparicos todos? Não me parece.
– Somos bons amigos, nada mais.
– O meu alferes é que sabe.
E com isto terminámos a conversa.
Depois do jantar, com os restos do almoço, a madame Constance permitiu que os miúdos pusessem o gramofone novamente a tocar. Dançaram os dois enquanto os adultos conversavam. Embora tivesse vontade, não falei às duas mulheres do álbum dos mortos da família, pois temia que se ofendessem por eu ter andado a mexericar. Falou-se das colheitas e da carestia de alguns bens, sobretudo de tecidos para confeccionar roupa. A produção de algodão e de outros materiais era quase toda desviada para as fábricas de fardamento e o povo, qualquer dia, começa a andar nu.
O serão deve ter durado até às dez da noite, altura em que os miúdos terão sido mandados para a cama. A madame Léonor acompanhou-os e o Rato, que sentiu estar a mais, saiu em direcção ao celeiro com o cachorro atrás a bambolear o traseiro. Fiquei eu e a madame Constance na sala a conversar, mais uma vez, sobre a guerra. Como ficou dito atrás, ela costumava ler o jornal uma vez por outra e pôs-me a par do que se ia passando nas linhas francesas, ou pelo menos aquilo que, depois de censurado, os jornais conseguiam publicar. Eu falei-lhe do pouco que sabia sobre a evolução da guerra. Sobre as nossas tropas em particular, não lhe dei nenhuma informação. A madame não era de certeza uma Matahari. Mas eu não podia falar sobre a posição das nossas tropas, ou sobre a situação moral e material das mesmas, sem incorrer em infracções graves ao regulamento militar, que proibia que se conversasse sobre isso com civis, fossem eles amigos, namoradas, noivas ou familiares. O prevaricador poderia ser acusado de espionagem e traição.
– Monsieur Vasques, que tem estado no front, acha que os aliados vão ganhar esta guerra?
– Os políticos e os generais crêem que sim. A acreditar neles, a vitória está por um fio. É uma questão de meses. O exército alemão, consta-se, está exaurido de homens e de material. O povo alemão, reduzido à fome, não aguentará por muito mais tempo e acabará por se revoltar.
– E é essa a sua opinião?
Eu reflecti um pouco. Recordei a experiência da trincheira e do contacto com o inimigo, invisível, mas presente e sempre activo, à espera da mais pequena distracção nossa para causar estragos, e disse:
– Não, madame Constance. A minha opinião é que a guerra está para durar. A campanha dos ingleses em Passchendaele não está a surtir o efeito que se esperava. Os alemães, embora tenham recuado por questões estratégicas, continuam bem instalados no terreno e as suas defesas são inexpugnáveis.
Ia dizer-lhe que, pelo contrário, as nossas defesas eram frágeis e que, se os alemães concentrassem tropas de assalto no sector português e decidissem atacar, seríamos dizimados. A brecha aberta permitiria o avanço do exército alemão, que poderia flanquear o exército inglês e ganhar a guerra mesmo antes que o exército francês, mais a sul, pudesse reagir. Mas calei-me. Era uma hipótese que o capitão Rebelo, em conversas da treta, costumava formular para ocupar o tempo. Poderia alarmar a senhora francesa e, além disso, eram informações confidenciais da situação das nossas tropas que eu devia coibir-me de divulgar.
A madame contou-me da revolução na Rússia e do perigo que era se os russos assinassem um armistício com a Alemanha. As divisões alemãs que estavam no Leste viriam para a França e superariam em número as divisões dos exércitos aliados. Eu que, desconhecia em parte o que se estava a passar na Rússia, fiquei muito preocupado.
Estava a fazer-se tarde e teríamos de madrugar. Eu e o Rato deveríamos apresentar-nos no depósito do CEP com as requisições dos militares que guiaríamos até l'Epinette e a gente da casa voltaria ao batatal.
Quando fiz o gesto de me levantar da cadeira para subir ao quarto, a madame disse:
– Quero pedir-lhe desculpa por tê-lo incomodado na última noite. E agradecer-lhe pela sua paciência em escutar-me. Monsieur Vasques é um verdadeiro gentilhomme. Merci.
– Nem sempre, madame, eu sou um gentilhomme.
– E ninguém poderia exigir que o fosse – responde ela equivocamente. – Há alturas em que uma mulher prefere menos gentileza e mais atrevimento por parte de um homem.
Enquanto dizia isto, segurou-me o braço. Eu disse-lhe que teria muita honra em ser mais oseur, mais atrevido, se ela assim o desejasse. A madame sorriu, libertou-me o braço depois de o pressionar um pouco e sugeriu que eu me fosse deitar. Ela ainda demoraria uma boa meia hora. Eu subi ao meu quarto, despi as roupas do dono da casa e pendurei-as nas costas da cadeira. Sobre uma arca estava a minha farda, lavada, seca e engomada, pronta a vestir no dia seguinte. Deitei-me e, enquanto esperei, senti-me um pouco apreensivo. Escrúpulos, talvez. Mas se a madame não os tinha, ou momentaneamente os pusera de parte, porque haveria eu de não fazer o mesmo? Afinal o marido era mais que certo que estivesse morto. E se não estivesse, quem em tempo de guerra iria preocupar-se com minudências morais?
Quando passou a meia hora e a madame não apareceu, eu pensei que tivesse havido um equívoco da minha parte. Talvez eu interpretasse mal as suas últimas palavras. Por isso senti-me aliviado. Mas o alívio durou pouco. Cerca de dez minutos passados em cima da meia hora, ouvi um toque ligeiro na porta e mandei entrar. A madame Constance entrou, pé ante pé, desta vez sem castiçal. Dei-lhe espaço na cama e ela deitou-se ao meu lado, com a face voltada para mim. A lua devia estar em quarto minguante, pois algum do seu brilho entrava pelos interstícios da janela, permitindo vislumbrar os contornos à nossa volta.
A madame afagou-me o rosto e o cabelo e depois beijou-me. Senti-a tremer enquanto me beijava e decidi intervir. Afastei-me um pouco e passei-lhe os meus dedos pelos lábios finos, pelo nariz pequeno, pelos olhos claros, pela testa, pelo cabelo comprido e ondeado, pelos ouvidos, pelo pescoço. Mas ela não se acalmou. Bem pelo contrário. Puxou-me as ceroulas para o fundo das pernas, sentou-se sobre mim, arregaçou a camisa de noite e fez penetrar-se. Eu senti o meu pénis a entrar-lhe nas carnes húmidas da vagina. A madame deu um suspiro e esteve por alguns momentos quieta, a sentir-me dentro dela, o rosto voltado para o tecto e os olhos fechados. Depois voltou-se para mim e iniciou um sobe e desce a diferentes velocidades, com suspiros, tremores e roncos mais ou menos discretos para não acordar a casa. Quando eu estava quase a vir-me, tentei retirar o pénis. Ela parou o sobe e desce e disse-me num murmúrio que não precisava, que era seguro. Mas se eu quisesse fazer de outra maneira, ela mudava de posição. Eu concordei e ela saiu de cima de mim. A breve paragem fez-me bem. Acalmei o desejo e pude desenvencilhar-me das ceroulas enroladas nos pés que me embargavam os movimentos. A madame deitou-se ao meu lado, tirou a camisa de dormir e, no lusco-fusco, pude entrever o seu corpo nu. Apesar dos mais de trinta anos, era ainda uma bela mulher. As coxas eram fortes e musculadas, a barriga delicada e de pele macia. Os peitos eram vastos e neles mergulhei a cabeça. Ela afastou as pernas e deixou que eu a penetrasse. Foi deitado sobre ela, a sua boca a roçar-me os ouvidos, que ouvi:
– Mon chèri! Mon amour!
Eu não sabia se ela se referia a mim, se ao marido ausente que ela sentia em mim. Mas também não tive coragem de lhe perguntar. Nem isso naquele momento vinha a propósito.
José Leon Machado, Memória das Estrelas sem Brilho, Edições Vercial, 2008.