Os regimes políticos criam um sistema e enquistam-se nele. Um sistema que, não sendo contrário às instituições, permite manipulá-las e gerar um estado de coisas capaz de garantir que os donos do poder permaneçam no poder.
O Sistema da Primeira República
Em Portugal, na Primeira República, os “democráticos” do Partido Republicano Português ganhavam quase sempre as eleições. Para isso tinham criado leis eleitorais que davam vantagem às grandes cidades (Lisboa e Porto) sobre o campo. Tinham também tirado o voto aos analfabetos (dos cerca de um milhão de eleitores dos finais da Monarquia passou-se aos cerca de 350.000 da República) e não o deram às mulheres (que diziam vulneráveis à manipulação do clero). E tinham milícias e braços mais ou menos armados – a Formiga Branca e os Carbonários – que “orientavam” ou até “corrigiam”, oportunamente, o voto popular.
O Sistema do Estado Novo
Uma das razões do triunfo da Ditadura Militar, em 28 de Maio de 1926 (faz para o ano um século), foi a falta de verdade e a arrogância com que Afonso Costa manipulou o sistema, a partir de uma ideia de superioridade moral e intelectual da esquerda republicana e livre pensadora (logo, boa) sobre a direita monárquica, católica e reaccionária (logo, má).
O Estado Novo, construído a partir dos confrontos de correntes na Ditadura Militar, foi o resultado do pensamento e da obra de Salazar, que se soube impôr aos militares e negociar com o Exército um pacto de regime, criando um modelo híbrido de nacionalismo conservador e autoritário. Nos anos 30, com a Europa dividida entre as monarquias constitucionais e liberais inglesa e nórdicas, as para-ditaduras da Europa Oriental, o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, o autoritarismo do Estado Novo aparecia como um regime “normal” e, em certa medida, até centrista, entre a esquerda republicana e conservadora e os radicais fascistizantes.
O sistema adaptou-se a seguir à Guerra, quando Portugal e Espanha ficaram como únicos regimes autoritários de direita numa Europa de democracias liberais e ditaduras comunistas. E a geopolítica da Guerra Fria, com os americanos a priorizarem a luta anticomunista, levou a que os regimes peninsulares fossem vistos por Washington como “males menores” perante os riscos do triunfo de uma oposição onde os comunistas eram dominantes. Por isso Portugal foi membro fundador da NATO, e a Espanha, a partir dos anos 50, aliada dos Estados Unidos.
O sistema funcionou com eleições que o governo também ia ganhando sempre (embora, ao contrário do Partido Republicano Português, a União Nacional não pretendesse ser democrática) e foi durando apesar da falta de liberdades políticas. Porquê? Primeiro, porque subsistia a memória das fraudes dos democráticos e da instabilidade e violência permanentes da Primeira República; e depois, pelos melhoramentos trazidos pelas grandes obras públicas, coisa rara entre 1890 e 1930, pela diplomacia de guerra de Salazar e pelos anos da segunda industrialização que trouxeram, sobretudo a partir das décadas de 50 e 60, desenvolvimento económico. O regime conseguiu ainda aproveitar a importância que os comunistas tinham na “oposição democrática” para, à semelhança do que fizera com os aliados da NATO, aparecer como única alternativa ao comunismo.
Em 1958, a eleição presidencial com Humberto Delgado mostrou, pela primeira vez, uma oposição com algum significado. E em 1961 foi o início da guerra de África, que acabaria com o Império pela dissidência dos capitães do MFA, mas que, no início, permitiu uma certa renovação, também pela solidariedade ultramarina da oposição democrática no apoio à política de Salazar.
A Esquerda, o Centrão e este sistema
O actual sistema vive da memória trabalhada e repisada dos malefícios e malfeitorias do regime anterior, e de ter procedido à homogeneização institucional com a Europa democrática. É o resultado dos 18 meses do PREC e anti-PREC que, depois do 25 de Novembro, deram o poder ao Centrão – PS-PSD –, deixando o poder cultural e mediático à “esquerda antifascista”.
O sistema é isto e esteve mais ou menos fechado até há poucos anos, porque os partidos à direita do Partido Socialista e os seus líderes nunca tiveram a inteligência e a coragem de defender, em democracia, valores nacional-conservadores que soassem remotamente aos que o Estado Novo defendera autoritariamente.
Foi o cansaço popular perante o atavismo, as insuficiências e incapacidades do sistema que forçou a abertura. E também o espírito do tempo, o movimento nacional-conservador e nacional popular que, na Euro-América, contesta uma velha ordem enquistada, alheada e ineficaz.
Assim, o sucesso do CHEGA não é fruto de uma misteriosa conspiração “cripto-nazi-fascista de extrema-direita”; é antes a consequência de uma notória surdez ao “povo” dos “donos do sistema” e dos seus arautos mediáticos.
E é já quase irreversível a contestação que o dito sistema tem procurado travar com uma barragem de argumentos e pretextos cada vez mais patéticos. A começar pela táctica da amálgama ideológica, em que tudo o que é mau, tudo o que não é correcto, tudo o que não é conveniente é de “extrema-direita”. “Fascista”, por exemplo, tornou-se um insulto avulso que pode ser arremessado com convicto à vontade contra alguém que seja “ultra-liberal” em economia. Ora quem tenha um mínimo de conhecimento de História, sabe que o fascismo, que se queria uma terceira via entre o capitalismo e o socialismo, nunca foi liberal, nem em política, nem em economia… mas o conhecimento histórico, político e ideológico há muito que abandonou estas paragens. Também o anti-semitismo e o racismo não foram características de raiz do fascismo mussoliniano; vieram marginalmente com a aliança e a progressiva dependência da Alemanha de Hitler. O nacional-socialismo hitleriano, esse sim, foi um nacionalismo etnocêntrico que, pela sua ideologia de racismo biológico, praticou grandes atrocidades. Como, de resto, as praticou o comunismo. Mas essas não existem ou é como se nunca tivessem existido porque a Esquerda, por um fenómeno mágico, continua a ser julgada pelas “boas intenções” do Manifesto Comunista e não pelos regimes concentracionários que criou – na Rússia de 1917 a 1991, na China maoísta, no Camboja de Pol Pot e noutros “paraísos terrestres”.
É este o sistema que a Esquerda criou e que soube perpetuar no regime aqui instaurado em 25 de Abril de 1974 e realinhado a 25 de Novembro; um regime ocupado por um Centrão “rigorosamente ao centro” em política, mas bem à esquerda em ideias e mecanismos culturais e mediáticos.
Onde é que está o povo?
Por isso há a abominação da Direita, sempre associada ao “fascismo de Salazar-Caetano”, à PIDE, ao Tarrafal, ao colonialismo, à contra-revolução, ao miguelismo, à inquisição, ao obscurantismo.
Dá-se, porém, que hoje a “extrema-direita” não vem da mais que enterrada Alemanha de Hitler, nem de conspirações militares, golpes palacianos, ou conluios da alta burguesia e da alta finança com a reacção ultramontana. Vem da ainda pior América de Trump, da inqualificável Itália de Meloni, da abjecta Hungria de Orbán – que, infelizmente, parece que provêm do voto do povo, fruto da sua escolha em eleições livres e justas. E vêm apesar de toda a máquina de propaganda do sistema e dos seus dependentes.
Um sistema que já começa a mostrar sinais de incapacidade para cumprir a sua proverbial função: gerar um estado de coisas capaz de garantir que os donos do poder permaneçam no poder. (Jaime nogueira Pinto)