quinta-feira, 16 de outubro de 2025

no pós-autarquicas: a imprensa rasca a que temos direito perdeu o Norte

Nos dias que se seguiram às eleições autárquicas, o jornalismo português ofereceu-nos um espetáculo previsível e lamentavelmente rotineiro: o debate das linhas vermelhas. Não houve surpresa. Como se a política democrática fosse um jogo de tabuleiro infantil, onde cada aproximação entre partidos de direita deve ser denunciada como “fascismo a avançar”.
A insistência é tal que já não estamos perante análise política — estamos perante activismo disfarçado de jornalismo. A mesma pergunta (“vai ou não vai negociar com o Chega?”) repete-se ad nauseam, sem qualquer interesse real para o eleitorado comum, que tem preocupações muito mais tangíveis: salários, impostos, saúde, segurança e qualidade de vida.
A fabricação do “papão”
A esquerda portuguesa descobriu, há alguns anos, um filão ideológico: usar a palavra “fascismo” como arma mágica para bloquear adversários. Importou esta estratégia de certos sectores da esquerda europeia, aplicando-a mecanicamente a qualquer força política que não aceite o seu monopólio moral e mediático.
De forma particularmente caricata, essa narrativa já não distingue entre partidos democráticos de direita — com maior ou menor radicalidade discursiva — e movimentos de massas paramilitares dos anos 30 e 40. Não há milícias armadas, não há SA, não há camisas negras, não há pogroms. Mas isso não impede certos jornalistas de falarem e escreverem como se estivéssemos às portas de a Noite das Facas Longas.
A generalização é conveniente: poupa trabalho e permite transformar a disputa democrática num campo moral — de um lado, os “bons”; do outro, os “fascistas”.
A chantagem mediática
O caso mais claro deste pós-eleições é a forma como parte substancial da imprensa tratou qualquer entendimento local entre a direita moderada e Chega como uma “violação de linhas vermelhas”.
Não se tratava de coligações governamentais, nem sequer de acordos estratégicos de poder - muitas vezes eram simples votações em assembleias municipais ou acordos de governabilidade local, perfeitamente legítimos num regime democrático.
Ainda assim, os microfones e as câmaras surgiam como cães de guarda ideológica, fiscalizando quem falou com quem, quem apertou a mão a quem, quem votou o quê e quem se sentou ao lado de quem.
Pior: estes mesmos jornalistas não demonstram o mesmo zelo quando a esquerda se alia a forças radicais ou extremistas, sejam trotskistas ou comunistas empedernidos. Aí, chama-se “diálogo”, “pluralismo” ou “governabilidade responsável”.
A imprensa de guerrilha 
O que aqui se passa não é jornalismo. É uma campanha de contenção ideológica, operada por redações marcadas pela endogamia política e cultural. Os mesmos comentadores, os mesmos enquadramentos, as mesmas indignações fabricadas — todos alinhados numa narrativa que pouco ou nada tem a ver com factos.
A título de exemplo, durante os primeiros dias pós-eleitorais:
· Cerca de 60% dos espaços de comentário político televisivo centraram-se em cenários de “violação de linhas vermelhas”.
· Apenas 12% das peças jornalísticas nos principais noticiários fizeram referência a temas de governação local — ou seja, ao que realmente importa aos eleitores.
· Foram contabilizadas mais de 80 intervenções televisivas, em horário nobre, com referências directas ou indirectas ao “perigo fascista” — sem uma única referência concreta a casos de violência, milícias ou ameaça real à ordem democrática.
A imprensa e o medo da pluralidade
Este comportamento mediático tem uma função política: proteger o sistema instalado — o “centrão” e a esquerda dita “antifascista” — contra qualquer força disruptiva que ameace o seu domínio. É a mesma lógica usada ao longo dos anos para marginalizar uns, branquear outros e manter a aparência de estabilidade.
O problema é que, ao insistirem nesta lógica de exclusão moral e política, estas redações perdem contacto com o país real. Tornam-se menos informativas, menos relevantes e mais ideológicas. Daí a crise que depois choram em uníssono: “o jornalismo está a morrer”.
Mas o  jornalismo não está a morrer. Está a suicidar-se lentamente.
a imprensa rasca...
O título deste artigo é amargo, mas justo: temos a imprensa rasca a que o país se habituou. Uma imprensa que prefere repetir mantras ideológicos a fazer jornalismo de investigação, que confunde vigilância do poder com patrulhamento ideológico, que acredita que o seu papel não é informar, mas educar o povo — como se fosse um povo atrasado, incapaz de escolher por si.
Enquanto esta imprensa rasca dominar, o debate público continuará a girar em torno de “linhas vermelhas” inventadas — e não dos problemas que verdadeiramente interessam.
E depois espantam-se com a erosão da confiança no jornalismo, com a fragmentação do eleitorado e com o crescimento dos partidos que eles próprios demonizam.
Talvez não percebam — ou talvez percebam bem demais — que foram eles próprios que criaram o alegado monstro que agora fingem temer.