Miguel Sousa Tavares foi vaiado e insultado por um bando de gente à porta da Câmara Municipal de Lisboa. Portou-se galhardamente, encarando de frente a grosseria dos abusadores. Tinha ocorrido na ira obreirista porque, como outros milhões de lisboetas, gosta de ver o rio em Alcântara sem barreiras de contentores.
Tomou posição pública sobre isso com característico vigor, frontalidade e dentro dos seus direitos de cidadania. Fez muito bem. Por ter feito isso, foi publicamente insultado por pessoal supostamente afecto ao trabalho de estiva no cais. Foi coagido e ameaçado. Fazer isto é um crime previsto no código penal. Há registos vídeo do incidente.
Os protagonistas são claramente identificáveis numa cena que, vista na TV, parece uma reposição com maus actores do "Há lodo no cais", de Elia Kazan, que caracterizou o ambiente portuário nas docas de Nova Iorque nos anos 50.
Eduardo Pimentel, presidente da Liscont, entrevistado após o incidente disse que a sua empresa não estava associada ao "movimento dos trabalhadores portuários, embora a gente o entenda". Ao dizer "a gente" presumo que se esteja a referir à empresa a que preside, a Liscont, que viu alargada por três décadas, por decreto governamental sem concurso, a concessão da exploração do cais de contentores de Alcântara.
A mesma "gente" que tenciona triplicar a capacidade de manuseamento de contentores em Alcântara, alargando a sua zona de operações para o cais onde hoje acostam os navios de cruzeiro. A "gente" a que Eduardo Pimentel se refere faz parte do grupo Mota Engil, de Jorge Coelho, antigo ministro com o pelouro das obras públicas. O mesmo Jorge Coelho que, enquanto dirigente do PS, articulou alto e bom som a sua filosofia de coexistência política em democracia com o seu inimitável "quem se mete com o PS leva". Manifestamente, estes seus conceitos estão a fazer doutrina no grupo a que agora preside.
A mensagem que os "trabalhadores portuários" levaram à Praça do Município é que quem se meta com a expansão do cais de contentores pode levar. Insultos leva, de certeza. Muitos mesmo. E graves ameaças de realmente "levar" também.
A pergunta que se põe é como é que um estado democrático coexiste com esta visão de que "quem se mete com o PS leva" que Jorge Coelho, certamente por acidente, transportou para o mundo da estiva nos cais de Lisboa que o grupo a que preside administra.
Ameaças e coação entram directamente na classe dos crimes semipúblicos que o Estado acompanha mediante denúncia dos visados. Se muito graves, e pessoalmente acho que estes foram, podem mesmo ser crimes públicos, nos quais o Estado litigará por si contra suspeitos de autoria e instigadores.
Talvez fosse saudável num Estado de Direito Democrático mostrar que o ambiente de criminalidade estilo Al Capone, que a procuradora Cândida Almeida, do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, tão bem denunciou como estando a querer instalar-se em Portugal, não é tolerado. Que não pode haver lodos nos cais de Portugal por muito poderosos que sejam política e financeiramente os grupos económicos. Que as ameaças de que quem se mete com "a gente" de Jorge Coelho leva não são toleradas. Um pormenor mais. A história de Elia Kazan sobre as máfias nos cais de Nova Iorque nos anos 50 era baseada em factos verídicos. Mário Crespo
Um artigo de Opinião que vale a pena ler mas, principalmente, medita-lo!