A 18 de Maio, os eleitores portugueses enviaram um segundo recado claro às forças políticas. O veredicto das urnas foi severo para o Partido Socialista (PS), que sofreu uma das piores derrotas da sua história recente, e consagrou a coligação de centro-direita Aliança Democrática (AD) como vencedora, pela segunda vez embora minoritária . Num cenário político fragmentado — com o partido CHEGA a conseguir um resultado histórico ultrapassando em deputados ao PS — esperava-se que os principais partidos fizessem uma pausa para reflectir. De facto, nas horas seguintes ao desaire, vários dirigentes socialistas falaram da necessidade de «reflexão profunda, lúcida e fria». Porém, na prática, essa reflexão ficou pelo caminho. O PS optou pela pressa, saltando «directo para os braços do primeiro candidato» disponível para a liderança, sem debate interno significativo. Assim, menos de uma semana após a derrota, o PS já tinha um novo líder oficioso e braços abertos à colaboração com a AD — um movimento que, na perspectiva de muitos, ignora a vontade popular expressa nas urnas.
Essa rapidez em alinhar com a força vencedora levanta
suspeitas justificadas. Afinal, não terá o eleitorado votado por uma mudança
de rumo? Em vez de autocrítica, o PS apressou-se a garantir status quo
e manutenção de poder nos bastidores, indicando disponibilidade imediata
para viabilizar o Governo alheio. Ao fugir à introspecção pós-eleitoral
e concentrar-se em arranjos rápidos, o partido acaba por desrespeitar os
eleitores — tanto os que o castigaram como os que nele confiaram esperando
oposição firme às políticas de direita.
O «centrão» ressuscitado e a pluralidade ignorada
Por detrás desta aproximação expedita entre PS e AD está a velha tentação do centrão: um entendimento confortável entre os grandes partidos, à revelia da diversidade de escolhas feitas pelos eleitores. Francisco Assis, por exemplo, defendeu que «PS e AD têm de dialogar para garantir estabilidade. Fernando Medina insistiu que os socialistas devem viabilizar a entrada em funções do novo Executivo, impondo apenas condições mínimas. Instalou-se, pois, no Largo do Rato, a doutrina de privilegiar acordos de bastidores, apresentando-os como «sentido de responsabilidade».
O problema é que estes consensos artificiais no topo
representam um pacto dos derrotados e vencedores para manterem o jogo entre si,
ignorando a pluralidade do voto popular. Forçar agora um entendimento
PS-AD — que não foi sufragado explicitamente — arrisca trair o espírito de
protesto e mudança. A vontade popular torna-se secundária quando as
cúpulas decretam que «o povo não sabe o que quer» e que o melhor é os do
costume entenderem-se uns com os outros.
Importa lembrar que a democracia portuguesa vive hoje de uma
crescente diversidade de opiniões. Ignorar essa diversidade pode ser
perigoso. Ao reagrupar-se num centrão formal, PS e AD enviam o sinal
de que pouco mudou. Não surpreende que André Ventura denuncie esse bloco
central e colha dividendos do descontentamento anti-sistema É exactamente este o risco: ao
atropelar o voto popular e isolar vozes emergentes, PS e AD podem estar a
alimentar o monstro que dizem querer conter. Miguel Prata Roque já classificou
estes arranjos como «consensos balofos» — verdadeiras mordaças ao
debate interno e externo.
Liderança entregue de bandeja: JLCarneiro e a sobrevivência do PS
A forma como José Luís Carneiro foi guindado a líder do PS
em tempo recorde ilustra a tentativa de sobrevivência política a todo o
custo. Horas após a demissão de Pedro Nuno Santos, Carneiro fez saber estar
disponível para assumir as rédeas socialistas. Em poucos dias, potenciais
concorrentes — Mariana Vieira da Silva, Fernando Medina, Ana Catarina Mendes,
Duarte Cordeiro — desistiram, deixando-o sozinho na corrida, em nome da
tão apregoada «unidade». Resultado: um líder aclamado e não eleito,
escolhido pelas elites em pânico.
Com Carneiro ungido pela máquina partidária, sem oposição
interna, o PS sinaliza continuidade e não ruptura. Vozes críticas internas
lembram que «falta de unidade não reconcilia o PS com os eleitores». Ao
presumir que basta um verniz de união e alguns acenos ao centro para recuperar
votos, a elite socialista arrisca desrespeitar novamente o eleitorado.
Logo nos primeiros dias, Carneiro declarou-se pronto a «contribuir
para a estabilidade política do país», abrindo os braços à AD. Carlos César
foi ainda mais longe: «O natural é que o Partido Socialista viabilize este
Governo». Traduzindo: o PS adoptará uma oposição de fachada, garantindo que a
AD não cai — desde que preserve influência nas grandes questões nacionais. É
uma doutrina de sobrevivência que põe a conveniência política acima da
renovação programática ou do respeito pela alternância ditada pelas urnas.
O preço de ignorar o eleitorado
Em democracia, contornar o veredicto popular é sempre um
jogo perigoso. Ao desvalorizar a vontade expressa em 18 de Maio, PS
e AD aprofundam a frustração de largas faixas do eleitorado. Muitos portugueses
sentem que votam, mas «eles» fazem sempre o que querem; se virem agora um bloco
central a governar, crescerá a percepção de que o voto pouco importa — e
isso só alimentará quem capitaliza o descrédito no sistema.
Uma governação equilibrada exige diálogos, mas não à
custa da pluralidade. O PS tem o direito de se recentrar, mas deveria
fazê-lo respeitando os seus processos democráticos internos e, sobretudo, o
papel que os eleitores lhe destinaram: o de oposição. A AD, sem maioria
absoluta, deve formar acordos que reflictam a mudança exigida pelos seus
votantes, não apenas o medo partilhado do crescimento do Chega. Se PS e AD
optarem pelo caminho fácil do conluio, estarão, na prática, a dizer aos
cidadãos que as eleições de pouco serviram — traindo o voto popular e
enfraquecendo a democracia.
O comportamento de PS e AD após 18 de Maio merece crítica
dura. A democracia portuguesa prospera da saudável tensão entre governo e
oposição, e da alternância quando assim o povo o decide — nunca de acordos
de bastidores que silenciem essa vontade. No dia 18 de Maio, o povo falou;
ignorá-lo, como fazem PS e AD, não é liderança esclarecida nem moderação
responsável — é miopia política.