Durante décadas, o Partido Socialista foi, em Portugal, um partido dividido — mas não fragmentado. As suas grandes disputas foram quase sempre pessoais, geracionais ou circunstanciais, nunca verdadeiramente ideológicas. Mário Soares contra Salgado Zenha, Soares contra Manuel Alegre: combates duros, sim; mas travados dentro de uma mesma casa, com uma ideia comum de partido e de regime.
Hoje, isso acabou.
As eleições presidenciais tornaram-se o espelho cruel dessa mutação. O exercício de imaginar o voto dos antigos líderes do PS é mais do que uma curiosidade política: é um diagnóstico. Um partido em que os seus antigos secretários-gerais votam em quatro candidatos distintos não está “plural”; está desagregado.
O PS deixou de ser um partido com correntes. Tornou-se um arquipélago.
A origem do estilhaçamento: Sócrates, a bancarrota e a mentira fundadora
A fragmentação começa com José Sócrates — não apenas com a sua governação, mas sobretudo com a forma como ela terminou. A bancarrota de 2011 não foi apenas financeira; foi moral, estratégica e identitária.
Até aí, o PS conseguia oscilar entre o discurso social e a prática orçamental com relativa impunidade. A intervenção externa acabou com essa ambiguidade. Pela primeira vez, o partido foi obrigado a escolher entre a ilusão ideológica e a realidade contabilística.
António José Seguro fez essa escolha. Pagou por ela.
Ao aceitar o quadro imposto pela União Europeia e pelo FMI, Seguro assumiu a heresia máxima dentro de um PS ainda intoxicado por retórica soberanista e voluntarista. Foi atacado, sabotado e, por fim, derrubado. Pedro Nuno Santos — então jovem promessa — chegou ao ponto de defender que a dívida não devia ser paga. Não era apenas uma divergência táctica: era uma ruptura com a própria ideia de Estado responsável.
A partir daí, o PS nunca mais recompôs a sua coluna vertebral.
A geringonça: o poder como anestesia ideológica
Se Sócrates abriu a fenda, a geringonça alargou-a até à ruptura.
Em 2015, o PS fez algo que nunca tinha feito: aliou-se formalmente às extremas-esquerdas para governar. Muitos socialistas detestaram a solução. Mas calaram-se. O poder tem esse efeito: suspende a consciência crítica.
O problema é que a geringonça não foi apenas uma solução parlamentar. Foi uma mutação identitária. Ao aceitar governar dependente do Bloco, do PCP e - mais tarde, indirectamente - do Livre, o PS deixou de ser o eixo do sistema para passar a ser apenas mais uma peça de uma frente ideológica.
A partir desse momento, o partido passou a viver dividido entre dois projectos incompatíveis:
- · um PS centrista, europeu, social-democrata no sentido clássico; e
- · um PS de frente popular, refém da agenda da esquerda radical.
Esses dois PS coexistem hoje — mas já não se reconhecem.
As presidenciais como sintoma, não como causa
É neste contexto que surge a candidatura de António José Seguro. E é por isso que ela está condenada — não por falha do candidato, mas pela doença do partido.
O PS que apoia Seguro não é o PS que governa câmaras com o Bloco. Não é o PS que flerta com greves políticas, nem o PS que tolera a captura do discurso social por sindicatos ideologizados. A recente “greve geral” apenas agravou o problema: empurrou votos socialistas para candidatos do Bloco e do PCP, fragmentando ainda mais o eleitorado que, teoricamente, deveria convergir.
O resultado pode ser histórico — e não no bom sentido: o pior desempenho de sempre de um candidato presidencial apoiado pelo PS.
Não é Seguro que falha. É o PS que já não existe como unidade política coerente.
O que se passa em Portugal não é excepção. É atraso.
Em França, o Partido Socialista colapsou após a presidência de Hollande, esmagado entre o macronismo centrista e a esquerda radical de Mélenchon. Restou um esqueleto eleitoral que acabou diluído em alianças artificiais.
Em Itália, o velho campo socialista dissolveu-se em fusões sucessivas, dando origem a partidos híbridos, sem identidade clara, permanentemente dependentes de coligações instáveis.
Em Espanha, o PSOE sobrevive — por agora — à custa de alianças com forças que minam a própria ideia de Estado nacional, pagando o preço de uma crescente perda de credibilidade institucional.
Na Alemanha, o SPD mantém-se apenas como gestor cansado de consensos, sem narrativa mobilizadora, eclipsado ora pelos Verdes, ora pela nova direita.
Em todos os casos, o padrão repete-se:
- · perda de identidade ideológica;
- · alianças tácticas transformadas em dependências estruturais;
- · eleitorado tradicional desmobilizado; e
- · emergência de partidos “homónimos” - uns mais radicais, outros mais tecnocráticos - que acabam por dividir, fundir ou substituir o original.
o PS português chegou tarde ao seu próprio declínio?
O PS português vive hoje aquilo que os seus congéneres europeus viveram há dez ou quinze anos. A diferença é que chega mais tarde — e, talvez por isso, com menos margem de manobra.
Já não se trata de escolher líderes. Trata-se de escolher o que o partido é — ou se ainda é alguma coisa.
Enquanto essa escolha não for feita, o PS continuará a fragmentar-se em eleições presidenciais, autárquicas e legislativas. Continuará a perder votos para a esquerda radical e credibilidade para o centro. Continuará, sobretudo, a ser um partido que fala a várias vozes — e já não convence ninguém.
O problema não é o candidato.
O problema é o partido.

