quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

A “vecchia signora”: o irrealizável como virtude moral

Aos 50 anos, a Constituição da República já pode começar a ser tratada como aquilo que é: uma vecchia signora. Não por respeito solene — mas por reconhecimento do óbvio. Um texto escrito por homens de um tempo que já não existe, em plena ressaca de uma revolução que confundiu a liberdade com a engenharia social, e que acreditou que bastava decretar a virtude para que o País a praticasse.

A Constituição de 1976
nasceu com uma ambição rara: não queria apenas organizar o poder; queria formar o povo. Não queria só dizer “como se governa”; queria dizer “como se deve viver”. E a partir daí fez-se o milagre moderno: o irrealizável foi elevado à condição de superioridade moral.
Porque é isso que não mudou em meio século: a velha tentação portuguesa de tratar a política como catecismo e a realidade como pecado.

A Constituição promete muito. Promete tanto que, quando falha, o problema nunca é da promessa. O problema é da vida, do mundo, do “neoliberalismo”, do “mercado”, da “Europa”, do clima, da conjuntura, do “populismo”, do país profundo, do eleitorado ignorante, do cidadão mal-agradecido. A promessa fica intacta — e quem a questiona é automaticamente suspeito.

Este é o segredo mais bem guardado da vecchia signora: 
o seu maior escudo não é jurídico; é moral. 
O texto constitucional transformou-se, para uma minoria cada vez mais minoria, num talismã. Um documento onde o impossível é apresentado como mandato ético. E, portanto, onde qualquer revisão é tratada como profanação.

Ora, o que se passou nestes 50 anos? Mudou quase tudo.
Mudou a demografia. Mudou a composição social. Mudou o mapa eleitoral. Mudou a economia, o trabalho, a tecnologia, a comunicação, a escola, a justiça, a segurança, a imigração, a relação com o Estado e — coisa decisiva — mudou a confiança.
Mudou também o modo como as sociedades vivem: já não é a aldeia disciplinada do século XX; é o mosaico fragmentado do século XXI. A Constituição, porém, continua a falar com a serenidade de quem escreve para um país homogéneo, com um Estado omnipotente e com uma política sem fricção.

E como se mantém uma senhora antiga, entre o arcaico e o irrealizável, em pleno mundo real?
Mantém-se por um mecanismo muito simples: o irrealizável funciona como arma política. Quando se promete o que não se pode cumprir, abre-se o caminho para a chantagem moral permanente: “se não foi feito, é porque alguém não quis”. E assim a política deixa de ser avaliação de resultados para passar a ser julgamento de intenções.
E aqui entra a peça que torna tudo mais saboroso: os guardiões da virtude.
Há quem queira a Constituição como ela está não por amor ao texto, mas por amor à sua utilidade. Um texto maximalista dá sempre para tudo: dá para impedir, dá para travar, dá para moralizar, dá para declarar “inconstitucional” o que é apenas “inconveniente”. Dá para transformar decisões políticas em litígios, e litígios em sentenças, e sentenças em substitutos do voto.
Quando a Constituição se torna bandeira moral, o debate político deixa de ser disputa sobre o possível e passa a ser disputa sobre quem é “bom” e quem é “mau”. E, curiosamente, os “bons” são quase sempre os mesmos: os que perderam influência nas urnas mas ganharam vocação para arbitrar a política por outros meios.

Daí a pergunta crucial: por que razão uma minoria, de eleição para eleição cada vez mais minoria, quer manter a vecchia signora?
Porque ela é uma fortaleza. Uma fortaleza simbólica e institucional. Uma fortaleza onde o irrealizável é proclamado como ideal e onde o ideal serve para acusar a realidade — e, sobretudo, para acusar quem ousa dizer que a realidade existe.
No fundo, esta é a fórmula: quanto mais impossível a promessa, mais fácil a pureza. Se é irrealizável, nunca se mede. Se nunca se mede, nunca se falha. E se nunca se falha, fica-se com o monopólio da virtude.
Mas um país não se governa com virtude proclamada. Governa-se com escolhas, prioridades, compromissos, consequências. Uma Constituição adulta deve servir para permitir que a democracia funcione, não para a aprisionar numa liturgia. Deve organizar o conflito político, não substituí-lo por tutela.

A vecchia signora merece respeito histórico — mas não merece ser mantida como relíquia intocável. 
Reformar, aqui, não é destruir: é trazer a Constituição ao País real, em vez de continuar a exigir que o País real se ajoelhe perante o País imaginado.
Talvez o maior sinal de maturidade democrática seja este: admitir que o irrealizável não é virtude moral. É apenas… irrealizável.