terça-feira, 23 de dezembro de 2025

quando a toga começa a subir ao palanque!

Neste texto recuso o desvio cómodo. Não discuto cartazes, não discuto sensibilidades seleccionadas, não discuto a eterna cortina de fumo identitária. Discuto o sistema judicial enquanto actor político de facto, ainda que negado.
Durante anos repetiu-se o refrão: o problema é o CHEGA. Depois foram os cartazes. 
Depois o tom. 
Depois o eleitorado. 
Agora já nem se disfarça: o problema passou a ser a existência de um partido que não respeita o guião informal do regime. E quando o guião falha, entra em cena a toga.

O que o episódio dos "cartazes" revelou não foi uma decisão isolada, mas um padrão. Um padrão de velocidades diferentes, de prioridades assimétricas, de urgências que surgem apenas quando o alvo é politicamente sensível e ideologicamente inconveniente.
Vivemos num país onde processos de corrupção atravessam décadas como se fossem património histórico; onde investigações se eternizam até à prescrição, essa forma elegante de absolvição sem inocência; onde crimes económicos se dissolvem no tempo com a naturalidade de quem sabe que o relógio trabalha a seu favor.
Mas basta um cartaz, uma frase, um incómodo simbólico — e eis que a justiça se transforma num atleta olímpico da celeridade.
É aqui que a pergunta deixa de ser jurídica e passa a ser política — ainda que formulada em voz baixa, para não ferir susceptibilidades institucionais: porquê esta rapidez? porquê aqui? porquê agora?
Invoca-se a Constituição, como sempre. Dignidade humana, protecção de minorias, prevenção do discurso discriminatório. Tudo conceitos respeitáveis — e ninguém de boa-fé os contesta. O problema não está nos princípios; está na sua aplicação selectiva.
Quando a Constituição é brandida como espada apenas contra uns e como escudo protector contra outros, deixa de ser Lei Fundamental e passa a ser instrumento táctico.

É neste ponto que a judicialização da política deixa de ser um conceito académico e se torna experiência quotidiana. Os tribunais, ao intervirem de forma expedita em matérias politicamente inflamadas, não se limitam a aplicar a lei: moldam o debate público, delimitam o campo do dizível, estabelecem fronteiras morais que não foram sufragadas em eleições.

E quando a toga se aproxima do palanque, não é a política que sobe de nível — é a justiça que desce.
Convém dizê-lo sem rodeios: a neutralidade ideológica não é uma condição automática de nenhuma instituição humana. Magistraturas não vivem numa redoma asséptica; respiram o mesmo ar cultural, mediático e universitário que o resto do país. Ignorar isso não é prudência - é ingenuidade ou conveniência.
Por isso, quando decisões rápidas recaem quase sempre sobre os mesmos actores, enquanto dossiês estruturalmente graves permanecem enterrados em gavetas durante anos, a percepção de parcialidade deixa de ser teoria conspirativa. Passa a ser um problema institucional sério, corrosivo, cumulativo.
A justiça não pode limitar-se a ser imparcial. Tem de parecer imparcial. E hoje, para uma parte crescente da sociedade portuguesa, já não parece.
A rapidez selectiva, o silêncio prolongado noutros casos, a escolha cirúrgica dos alvos — tudo isto mina a confiança pública muito mais eficazmente do que qualquer cartaz alguma vez poderia fazer.
No fim, sobra a pergunta simples, brutal, impossível de ignorar:
Temos tribunais que aplicam a lei ou tribunais que, consciente ou inconscientemente, participam no jogo político?
Enquanto a resposta for ambígua, enquanto a dúvida persistir, enquanto a balança pender sempre para o mesmo lado, o problema continuará a não ser o CHEGA, nem os cartazes, nem os pretextos do costume.
O problema QED é o próprio sistema judicial.