Há debates que, mesmo quando fingem discutir ideias, acabam por revelar algo muito mais cru: quem fala para quem. Não por aquilo que dizem, mas por aquilo que pressupõem. Não pelo tom, mas pelo destinatário implícito. O debate entre João Cotrim Figueiredo e André Ventura foi um desses momentos raros de clarificação social — quase sociológica — da política portuguesa contemporânea.
De um lado, o candidato do Príncipe Real. Do outro, o candidato do País Real.
Cotrim Figueiredo falou, como sempre, para uma fracção muito específica do País: aquela que vive confortavelmente instalada na convicção de que o Estado é um estorvo, os impostos um roubo e a “sensibilidade social” uma excentricidade cara. Um discurso afinado para os 5% que confundem privilégio herdado com virtude adquirida e baptizam de meritocracia aquilo que, na prática, é a transmissão silenciosa da vantagem por redes familiares, contactos certos e portas que nunca estiveram verdadeiramente fechadas.
É um liberalismo de salão, bem-educado, urbano, perfumado de cosmopolitismo e convicto de que o mundo começa nas Avenidas Novas, passa pela Foz e termina num brunch tardio ao domingo. Tudo o resto é folclore, custo social ou “externalidade”.
André Ventura, pelo contrário, falou para quem não tem tempo para essas subtilezas. Falou para quem depende do Estado não por ideologia, mas por necessidade. Para quem sabe que igualdade de direitos não é um slogan constitucional decorativo, mas uma linha de defesa mínima contra a arbitrariedade económica e social. Falou para o País que trabalha, paga, espera, e quase nunca é ouvido.
Não se trata aqui de santificar Ventura ou de absolver excessos retóricos. Trata-se de reconhecer um facto simples e incómodo: um falou para o povo; o outro falou para a elite. Um representou, conscientemente ou não, o partido popular; o outro defendeu, com elegância e bons modos, a elite de facto — essa mesma que se julga “naturalmente” superior, embora raramente o seja por mérito próprio.
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O mais curioso — e talvez o mais trágico — é assistir ao entusiasmo juvenil por este liberalismo importado, sobretudo entre uma geração que ainda não trabalhou, não pagou impostos, não enfrentou a precariedade e sonha enriquecer sem perceber de onde vem, historicamente, a riqueza em Portugal. Votam contra os seus próprios interesses com o fervor típico da alienação bem-embalada.
O debate não foi entre direita e direita, nem entre modelos económicos. Foi entre dois Países. Um pequeno, seguro de si, convencido de que governa por direito natural. Outro vasto, real, imperfeito, mas vivo. E quando esses dois Países se olham de frente, percebe-se porque tantos se sentem incomodados.
Não é populismo. É aritmética social.
Cinco por cento não são o País.
E nunca o foram.
