O Director do Correio da Mnaha decidiu vir a público, em tom queixoso e corporativo, avisar-nos de um perigo supremo: “Diabolizar o jornalismo é a mais perigosa tentação totalitária.”
A frase é solene, alarmista e profundamente reveladora. Não do perigo que denuncia, mas da confusão — deliberada — que a sustém.
Porque o que hoje está a ser criticado não é o jornalismo enquanto pilar da democracia. É uma certa prática jornalística que se tornou militante, previsível, moralista e, sobretudo, incapaz de aceitar escrutínio. Confundir essa crítica com “totalitarismo” não é apenas um erro intelectual: é uma manobra de autodefesa corporativa.
O truque é simples e já velho. Sempre que o jornalismo é confrontado com as suas falhas — enviesamento, falta de contraditório, activismo disfarçado de notícia — responde com o espantalho da censura. Quem critica quer “calar”. Quem discorda quer “controlar”. Quem protesta é “populista”. E quem deixa de comprar jornais é, claro, ignorante ou manipulado pelas redes sociais.
Ora, convém dizer isto sem rodeios: nenhum poder numa democracia está acima da crítica. Nem o político, nem o judicial, nem o mediático. Quando directores de jornais passam a tratar qualquer questionamento como uma ameaça à liberdade, não estão a defender a democracia — estão a proteger um estatuto.
Carlos Rodrigues fala de “jornalismo livre e independente” como se fosse uma evidência auto-proclamada. Mas a pergunta que se impõe é elementar: livre de quê? Independente de quem?
Livre do poder político? Talvez, em alguns casos.
Livre do consenso ideológico dominante? Raramente.
Livre das agendas morais em voga, das narrativas importadas e do alinhamento automático com certas causas? Manifestamente não.
O resultado está à vista. Entrevistas que não são entrevistas, mas julgamentos. Perguntas que não procuram esclarecer, mas encurralar. Interrupções constantes quando o discurso sai do guião esperado. O contraditório transformado em ruído e o entrevistado tratado como réu. O exemplo é recorrente e visível para qualquer espectador minimamente atento: as entrevistas a André Ventura raramente são exercícios de jornalismo rigoroso; são, demasiadas vezes, exercícios de silenciamento activo, embrulhados na retórica do “escrutínio”.
Perante isto, Rodrigues invoca outro argumento de cartilha: o “reflexo trumpiano” de atacar jornalistas. É a importação preguiçosa de Donald Trump para o debate português, como se toda a crítica ao jornalismo fosse uma imitação tropical do antigo presidente americano. Serve para evitar discutir o essencial: apontar falhas concretas não é atacar a liberdade de imprensa. É exigir que ela esteja à altura da função que reclama para si.
A ironia maior está na inversão de responsabilidades. Segundo esta narrativa, a crise da comunicação social deve-se à fuga da publicidade, às plataformas digitais, à distribuição, às multinacionais, aos políticos ingratos e aos leitores ingratos. A tudo, menos a quem escreve, edita e comenta.
Mas a verdade é bem mais incómoda: os leitores não abandonaram os jornais por acaso. Foram sendo afastados por um jornalismo que trocou a informação pela catequese, o pluralismo pelo sermão e a curiosidade pelo activismo.
Quando um jornal fala sempre para o mesmo público, confirma sempre as mesmas certezas e demoniza sistematicamente quem pensa fora do seu quadro moral, não está a informar: está a disciplinar. E nenhum leitor gosta de pagar para ser tratado como aluno preguiçoso numa sala de aula ideológica.
Rodrigues escreve que “sem escrutínio jornalístico não há democracia”. Tem razão. Mas esquece a metade decisiva da equação: sem escrutínio do jornalismo, há propaganda. O jornalismo não é um sacerdócio, nem um oráculo moral. É um serviço público exercido por profissionais falíveis, sujeitos — como todos os outros — ao julgamento crítico dos cidadãos.
Chamar “tentação totalitária” a essa crítica é abusar da linguagem e banalizar conceitos que deveriam ser usados com parcimónia. Totalitário não é quem critica o jornalismo. Totalitário é quem não admite ser criticado. Totalitário é quem se arroga o direito de definir os limites do debate público sem prestar contas a ninguém.
O jornalismo português não está a ser diabolizado. Está, finalmente, a ser confrontado com o seu próprio espelho. E para alguns directores, isso é mais perturbador do que qualquer ameaça externa. Porque obriga a reconhecer que a crise não vem apenas de fora das redacções. Vem, sobretudo, de dentro.

