quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Mudou o sotaque, não mudou a receita.

Os camaradas voltaram.
Há fenómenos políticos que não exigem grande erudição para serem detectados. Basta ligar a televisão, passar os olhos pelo feed, ou assistir a um debate onde três comentadores de esquerda discutem entre si qual deles é menos de direita. A moda, hoje, é afirmar que “os camaradas estão de volta”. Na verdade, eles nunca foram embora; apenas trocaram de disfarce. Durante uns anos chamaram-se woke, progressistas, interseccionais, faquires da linguagem inclusiva. Agora, que o vento eleitoral mudou, recuperam a designação clássica — a que dá lustro, autoridade e cheiro a PREC: “camaradas”[6].
E o país, como de costume, “cá está às ordens”.
O texto que me serve de ponto de partida descreve bem esta mutação súbita: os “camarados” (versão eduardiana), os “camarades” (versão parisiense), e os “todes” (versão TikTok) desapareceram num ápice. A extrema-esquerda lá fez o seu congresso interno de marketing — provavelmente organizado por um desses centros de produção ideológica saídos directamente do manual de guerra cultural — e decidiu que era tempo de abandonar o carnaval linguístico e regressar ao velho fardamento revolucionário. Como quem diz: acabou a brincadeira, agora é a sério.
Quando o eleitorado foge, regressa o manual do PREC
A explicação é simples: perderam eleições, perderam votos, perderam juventude, perderam paciência e perceberam que a guerra cultural do “todes”, do “género fluido” e da “palmada opressora” não lhes rendeu mais do que umas palminhas internas[5]. A realidade entrou-lhes pela porta adentro: desemprego crescente, salários estagnados, insegurança nas ruas, imigração descontrolada, e um povo que já não engole a pastilha da “culpa estrutural”.

Quando a esquerda percebe que está a ser abandonada pelos seus próprios órfãos sociológicos, faz aquilo que sempre fez quando a maré eleitoral desce: regressa ao Gramscismo de raiz[1].
Sim, o Gramscismo — essa colónia permanente no imaginário revolucionário — que ensina que é preciso dominar o espaço cultural antes de se dominar o espaço político.
Hoje o processo repete-se, apenas com nova embalagem: as mesmas palavras de ordem, os mesmos apelos à “luta”, o mesmo desprezo pela História quando lhes convém, e a mesma desmemória selectiva que lhes permite apagar as asneiras de ontem[3], como se nunca tivessem existido.
O privilégio supremo: o direito à desmemória
Queixam-se muito da “extrema-direita”, mas praticam o maior dos extremismos: o de exigir que a memória colectiva seja reformatada a cada ano eleitoral.

Ontem tínhamos de tratar toda a gente por “todes”, hoje quem o fizer é antiquado e burguês; ontem o wokismo era a bandeira, hoje é sinal de decadência urbana; ontem o inimigo era o patriarcado, hoje é o “neoliberalismo”. Amanhã será o algoritmo opressor do telemóvel.
Este mecanismo é velho. Muito velho. E extremamente eficaz.
Foi praticado já no PREC, foi reciclado nos anos 80 e 90, e regressa agora com as mesmas notas, apenas tocadas num instrumento digital[2].

A pergunta é sempre a mesma:
Como é possível que esta rotatividade ideológica nunca seja julgada pelo que prometeu, executou ou destruiu?
Resposta simples:
porque o progressismo goza do seu privilégio supremo — o direito à desmemória.

E porque ocupou, durante décadas, as estruturas que regulam esse mesmo processo de memória e esquecimento: escolas, editoras, jornalismo, universidades e, agora, plataformas de entretenimento para adolescentes[8].
O país real observa; o país mediático obedece
Enquanto isto, o país real — aquele que trabalha, paga contas, sente insegurança nas ruas, vive longe da espuma — assiste ao espetáculo com crescente irritação. O país mediático, esse, limita-se a obedecer. A cada nova injunção moral, a cada nova moda revolucionária reciclada, jornalistas e comentadores alinham como se a coisa fosse produto de reflexão profunda e não simples sobrevivência estratégica:
E é aqui que entra o elemento mais triste — e por vezes, o mais cómico:
há uma direita, aquela que o texto original muito justamente designa como a “direita mais estúpida”, que se apressa sempre a seguir a pauta da esquerda[9]. A esquerda define o terreno; a direita corre atrás, ansiosa por provar que “não é radical”, que “não é perigosa”, que “não é populista”. Resultado? Perde sempre. Até quando tem razão.
Não perceberam que o crescimento do Chega provém exactamente do contrário: da recusa frontal em obedecer ao guião que a esquerda lhes empurra há cinquenta anos[7].

Do wokismo à luta de classes: o círculo completo
Agora, apercebendo-se de que a utopia identitária lhes retirou votos — especialmente entre jovens e trabalhadores —, os velhos revolucionários decidiram regressar à luta de classes 2.0[10].A retórica inflama-se novamente, os “patrões” reaparecem como vilões omnipresentes, e as televisões juvenis recuperam o vocabulário da década de 70, mas com grafismo de videojogo. Nada disto é convicção; é desespero estratégico.
Quando nada resulta, regressa-se ao básico: bandeiras vermelhas, punhos erguidos e discursos sobre “reacções fascistas”[11]. Sinal clássico de que perceberam que perderam terreno e precisam reanimar a tropa.

Voltaram os camaradas, mas os problemas ficaram...
O retorno dos “camaradas” não é renascimento ideológico. É, antes, a mais recente operação de cosmética de um movimento político que perdeu contacto com o país real e com as prioridades reais das pessoas. Podem mudar o pronome, a bandeira, a palavra de ordem; o que não conseguem mudar é a realidade — e essa insiste em contradizê-los.

E enquanto reciclam o PREC, actualizam o Gramscismo e exigem desmemória colectiva, Portugal continua a enfrentar exactamente os mesmos problemas: insegurança, pressão migratória, salários baixos, custo de vida, rupturas culturais e um Estado que já não consegue garantir o básico.
Mas o país não precisa de camaradas reciclados.
Precisa de verdade, memória, responsabilidade e coragem moral.
Coisas que não se encontram, infelizmente, nem nos manuais gramscistas nem nas novas televisões de activismo juvenil.

Notas
[1] Gramscismo cultural — o termo, usado por simplificação jornalística, não corresponde literalmente ao conceito formulado por Antonio Gramsci, mas descreve correctamente a estratégia que muitos partidos e movimentos progressistas adoptaram desde os anos 70: conquistar hegemonia moral e cultural antes de disputar o poder político. Em Portugal, o PREC tratou de adaptar o método à portuguesa, com bandeirinhas, megafones e um imprevisível exotismo tropical à mistura.
[2] A súbita substituição de modas ideológicas — do wokismo para a “luta de classes 2.0” — não resulta de reflexão, mas de aritmética: perderam votos, perderam juventude, perderam influência. Não é uma reinvenção; é uma operação de sobrevivência. Como em 1989, quando a queda do Muro obrigou muitos revolucionários a trocar o lenço vermelho pelo curso de ciências políticas.
[3] O “direito à desmemória” é uma das mais fascinantes invenções políticas do progressismo contemporâneo. Implica a exigência de que todos aceitem como verdade universal aquilo que eles afirmaram ontem, e ao mesmo tempo aceitem como igualmente universal aquilo que eles afirmam hoje — mesmo que seja o exacto contrário.
[4] A técnica não é nova: nos anos 70, muitos dos futuros dirigentes do jornalismo e da academia mudaram de linha política com a mesma facilidade com que mudavam de slogan. Num dia “A luta continua”, no dia seguinte “Somos europeístas moderados”. A vantagem é óbvia: nunca precisam de fazer balanço crítico do que disseram ou fizeram.
[5] Wokismo — importação americana que chegou às universidades portuguesas com atraso, como quase tudo. Entre nós, consolidou-se sobretudo nas humanidades, em projectos subsidiados e nas redacções que confundem “activismo” com jornalismo. Durou o tempo suficiente para desgastar quem o defendia e irritar quem era obrigado a suportá-lo.
[6] Sobre a constante “recauchutagem” de velhos militantes do PREC em novos papéis mediáticos: nada mais representativo do que a sucessão de comentadores que descobriram que, aos 70 anos, são afinal “radicais modernos”. A idade não lhes trouxe sabedoria, mas trouxe-lhes lugar cativo em debates televisivos onde continuam a falar como se fosse 1975.
[7] A desorientação da esquerda perante o crescimento do Chega confirma um facto simples: habituaram-se tanto a controlar a agenda que já não sabem lidar com a perda do monopólio moral. Durante décadas foram eles que definiam o que era legítimo, aceitável ou moderado; hoje, descobrem que há milhões de portugueses que recusam esse tribunal ideológico.
[8] As novas televisões para jovens — plataformas supostamente educativas que, na prática, funcionam como viveiros de futuros militantes culturais. São a actualização do velho método gramscista de ocupar a imaginação dos mais novos, agora com legendas coloridas, humor de TikTok e debates sobre micro-opressões.
[9] A incapacidade de parte da direita em rejeitar a “agenda” imposta pela esquerda merece um estudo sociológico sério. Há uma direita que, receando ser confundida com a direita, prefere lutar para ser aceite pela esquerda. Esforço vão: nunca serão aceites e perdem sempre os seus próprios eleitores.
[10] O retorno à luta de classes — ainda que em versão pós-moderna — é a última tentativa de recuperar um eleitorado que já não se revê em causas identitárias. Não é convicção; é desespero estratégico. Como mudar o letreiro da loja porque o negócio está falido.
[11] Não é coincidência que, sempre que a esquerda enfrenta dificuldades eleitorais, ressurgem discursos inflamados sobre “direitos adquiridos”, “capitalistas”, “patões”, ou “forças reaccionárias”. São palavras-chave de stock, prontas a sair do armário sempre que a noite eleitoral corre mal.
[12] O país real — aquele que trabalha, paga contas, sente insegurança nas ruas e vive longe da espuma mediática — é sempre o grande ausente destes exercícios de reinvenção ideológica. Mas é precisamente esse país real que já não está disposto a ser catequizado.