De tudo o que entre as 09:00 e as 13:00 da manhã daquele dia 23 de Novembro se passou no cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, a mais forte lembrança que guardo é um misto de duas coisas: os lancinantes apelos com que 200 paraquedistas tentam aliciar/persuadir outros 500 a aderir à causa sediciosa em que se meteram e a imperturbável impavidez dos destinatários dos apelos.
Os 200 estão concentrados em cacho, na plataforma do cais. É nítida a ansiedade que deles tomou conta – uma ansiedade revolta – e a forma como se apresentam, no atavio e nas maneiras, em nada se confunde com o garbo vaidoso das tropas paraquedistas. Faz dias que se sublevaram no seu quartel de Tancos, a seguir saneando aqueles que com eles não alinharam.
Os 500 estão na sua maior parte espalhados pela amurada do velhinho “Niassa” que os transportou de Luanda. Eles e outros tantos, na sua maior parte fuzileiros e dragões de cavalaria, estes viajando no “Uíge”, chegado na mesma altura, era tudo o que sobrava do dispositivo militar português em Angola até ao entardecer do dia 10 de Novembro de 1975, poucas horas antes da proclamação da independência da nova nação.
A crise político-militar, chamavam-lhe assim, em que Portugal vivia cronicamente mergulhado, havia-se exacerbado significativamente por aqueles tempos. A sublevação dos “páras”, afloramento maior do ambiente revolucionário que há meses sacode as Forças Armadas, reduzindo a cacos a disciplina militar, é lida por muitos como primeiro passo de um putsch que parece estar para acontecer.
É o que transparece de pronunciamentos como um, de Mário Soares, feito na véspera de 23. À saída de um encontro com o primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, diz que não se sentará com o PCP, assim contrariando uma sugestão do seu interlocutor, “enquanto o PCP continuar, pela força, a querer conquistar o poder”. Seguem a mesma linha afirmações de Melo Antunes numa entrevista ao Nouvel Observateur: “o PCP quer tomar o poder pela força”.
Foi uma vantagem ter acompanhado “ao vivo” os acontecimentos daquele dia 23 no cais da Rocha do Conde de Óbidos, ainda por cima nas vestes de jornalista. A agenda desse dia do antigo “Jornal Novo”, onde então trabalhava, destinara-me “aquilo” como serviço. O que se via a olho nu e o que se conseguia apurar em indagações com este e aquele era elucidativo. Os sublevados dos cais agiam em nome de uma causa em que tudo jogavam.
Precisavam a todo o custo de convencer os camaradas do “Niassa” a irem com eles para o seu “reduto” sublevado de Tancos, propósito em nome do qual haviam levado para ali dezenas de autocarros. Era “fundamental para a revolução”, dizia um dos sublevados, enquanto outro, esmiuçando o pensamento do que o antecedera, explicava que dessa maneira “faremos pender para o lado correcto o prato da balança da revolução”.
Ao fim de quatro horas, aqui e ali marcadas por momentos dramáticos, entre eles, por volta das 11:00, uma ululante manifestação dos sublevados destinada a impedir que o “Niassa” desatracasse para fundear a meio do rio (era o que lhes tinha constado, embora não se tivessem visto sinais disso), eis que os “páras” de Angola finalmente desembarcam. Fazem-no em boa ordem, cada um deles trazendo a tiracolo a sua “Armalite AR-10”. O destino que os espera não é Tancos, mas sim a Ota, para onde seguem em dezenas de Berliets militares também estacionadas no cais.
A RTP registou
os lancinantes apelos com que 200 paraquedistas tentam aliciar/persuadir outros 500 a aderir à causa sediciosa em que se meteram e a imperturbável impavidez dos destinatários dos apelos.
O comandante dos “páras” de Angola é um tenente-coronel, Ramos Gonçalves. O mérito do “milagre” a que acabara de se assistir na Rocha do Conde de Óbidos não é estranho a um esforço por ele exercido no sentido de os prevenir para a “aventura” que seria a sua adesão aos sublevados. A parte de leão do mérito, essa é, porém, devida a um outro oficial páraquedista que também vem a bordo: o general graduado Heitor Almendra.
É destinada a ele uma carta escrita à mão que o general Morais e Silva, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, pede aos pilotos da barra que entreguem no “Niassa” quando ainda de madrugada o seu barco dele se aproximar para o guiar até aos cais. O que lhe pede, depois de o avisar do que está montado no cais, é que faça o seu melhor para manter afastados daquilo os “páras” embarcados.
O transmontano Heitor Almendra é um dos mais prestigiados oficiais páraquedistas – aura advinda de uma rica folha de serviços, iniciada em 1956 em Timor. Em 1961, já como capitão, é o comandante de uma companhia de páraquedistas enviada de emergência para Angola. Moçambique e a Guiné também virão a fazer parte do seu roteiro militar, mas é por Angola que se detém por mais tempo.
O que mais deve ter pesado na escolha de Morais e Silva para fazer dele destinatário da carta que faz chegar ao “Niassa” – também vem abordo o último alto-comissário em Angola, almirante Leonel Cardoso e o secretário-geral do governo, tenente-coronel Gonçalves Ribeiro – foi, sem dúvida, o seu poder de influência, parte dele advindo do seu destemido desempenho como comandante do COPLAD (Comando Operacional de Luanda), criado em Outubro de 1974 com a missão de velar pela segurança na cidade.
Entre as novidades naquele dia apanhadas pelos jornalistas no cais há uma segundo a qual “gente da Marinha”, usando meios técnicos que tornavam isso possível, havia dias que pusera em marcha algumas acções destinadas a convencer os “páras” do “Niassa” a aderir à causa da revolução”. Talvez por não haver a certeza do que fariam ante o pungente espectáculo montando no cais, Morais e Silva terá visto em Heitor Almendra o homem certo para a circunstância.
Tomar o poder pela força é, dizem os manuais, é fazê-lo manu militari. Se a amotinação dos “páras” de Tancos, imbricada com outras irrompidas em várias unidades do Exército e da Armada, podia ser lida como fazendo parte de um golpe destinado a tomar o poder pela força, o que será que poderia ter acontecido se os “páras” de Angola, constituindo no seu conjunto uma força experiente e com elevado poder de fogo, tivesse aderido?
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Conta-se, sabendo-se que quem conta sabe o que diz (p.ex, Zita Seabra, no seu ”Foi Assim” e em várias intervenções públicas), que o PCP, comprometido com um golpe em preparação, se descomprometera a tempo de não passar por implicado. O momentum em que tal aconteceu não terá sido aquele em que se tornou evidente que os “páras” do “Niassa” seguiram outro caminho?
A fuga em frente em que na manhã de 25 de Novembro os sublevados de Tancos e outros mais se lançam, ocupando as bases aéreas do Montijo e Monte Real e várias instalações da Força Aérea, já não podia ser obra do PCP. O desespero de causa que tudo aquilo transmite não reflecte o calculismo e a compostura do PCP. Muito menos a oportunidade então oferecida “à outra parte” para um contragolpe destinado a acabar de vez com a “bagunça” que tomara conta do país.
