porque importa (ainda) o 25 de Novembro
O 25 de Novembro de 1975 encerra o Processo Revolucionário em Curso (PREC) e redefine o quadro institucional português. A data, disputada na memória pública, marca o momento em que uma tentativa de sublevação de unidades militares da extrema-esquerda é travada por um dispositivo “moderado” centrado no Regimento de Comandos da Amadora, sob comando operacional de Ramalho Eanes e liderança no terreno de Jaime Neves. Em Lisboa é decretado estado de sítio e o controlo dos meios de comunicação torna-se o eixo tático das horas decisivas.
Antecedentes (Abril–Novembro de 1975): do “Verão Quente” à rotura
-11 de Março de 1975 acelera nacionalizações e radicaliza o campo revolucionário; a clivagem entre “legitimidade revolucionária” e “legitimidade eleitoral” acentua-se ao longo do ano.
-Documento dos Nove (6 de Agosto): plataforma dos moderados no MFA, afirma o primado da via pluralista e da legitimação pelo voto, contra projectos de “poder popular” sem sufrágio.
-5.ª Divisão do EMGFA (Dinamização Cultural) é desativada em Agosto–Outubro, sinal do recuo do aparelho de propaganda militar que a esquerda identificava como seu.
-COPCON, epicentro da ala revolucionária sob Otelo Saraiva de Carvalho, entra em perda de funções em 1975 e será extinto após o 25 de Novembro.
-Novembro de 1975: manifestações rodeiam São Bento; cresce a paralisia governativa e, a 20 de Novembro, o próprio Governo suspende funções — um quadro de ingovernabilidade que antecede o estado de sítio.
Síntese: No outono de 1975 há dois projectos incompatíveis: a consolidação constitucional do pluralismo e a continuação de um poder revolucionário de base militar e “popular”.
As 24–36 horas decisivas: o que se passou
-Madrugada de 25 de Novembro. Pára-quedistas de Tancos ocupam bases aéreas (Ota, Tancos, Monte Real, Montijo) e o comando da 1.ª Região Aérea em Monsanto; o RALIS movimenta-se em pontos chave; a EPAM ocupa a RTP. O objectivo: neutralizar meios aéreos, dominar comunicações e alterar a correlação de forças na Região Militar de Lisboa (RML).
-Contra-dispositivo moderado. A RML é entregue ao Vasco Lourenço; a coordenação operacional centra-se na Regimento de Comandos da Amadora (Comandos) sob Ramalho Eanes. Jaime Neves cerca posições estratégicas (Monsanto) e prioriza a conquista do espaço informativo. As emissões da RTP e rádio migram para o Porto, mitigando a vantagem dos sublevados.
-Estado de sítio. À tarde, o Presidente Costa Gomes decreta estado de sítio na área da RML O acto formaliza a centralização de autoridade militar e legitima o restabelecimento da ordem.
-Informação e rua. A batalha pelo controlo mediático é visível: um oficial da EPAM fala em directo na RTP (Duran Clemente) pedindo mobilização popular, mas as emissões são transferidas; o efeito-choque desvanece.
-Desfecho. Nas horas seguintes, as posições ocupadas são retomadas, os focos de resistência desarmados e a cadeia de comando moderada impõe-se sem derrapagem para uma guerra civil — o ponto político que, até hoje, estrutura a memória vencedora do 25 de Novembro.
Francisco da Costa Gomes — Presidente da Republica; decreta o estado de sítio; evitando uma escalada sangrenta
António Ramalho Eanes — coordenação operacional a partir da Amadora; um ano depois seria o primeiro PR eleito por sufrágio directo (1976). (
Jaime Neves — comandante dos Comandos; liderança tática na RML, foco em controlar nós críticos
Vasco Lourenço — assume a RML por decisão do Conselho da Revolução; por ter mudado de posição tornou-se uma peça-chave na recomposição do MFA moderado.
Otelo Saraiva de Carvalho — rosto do COPCON; associado ao eixo revolucionário; a sua influência decresce após o 25/11.
Causas e mecanismos (em diálogo com a historiografia)
-Divisões ideológicas. A competição entre poder militar revolucionário e legitimação eleitoral atingiu o paroxismo no outono de 1975, após nacionalizações e tentativa de institucionalização do “poder popular”.
-Instituições sob tensão.- A desativação da 5.ª Divisão (Agosto–Outubro) e a erosão do COPCON sinalizam o desgaste do braço político-militar da esquerda revolucionária.
-Receio de radicalização. O cerco a São Bento e a paralisia governativa (20 de Novembro) criam percepção de risco sistémico, acelerando a decisão presidencial de estado de sítio quando a sublevação militar eclode.
Consequências imediatas e reconfiguração do regime
-Fim do PREC e recentragem no itinerário constitucional que culmina na Constituição de 1976 (2 de Abril) e na normalização eleitoral (legislativas e presidenciais).
-Eanes Presidente (27 de Junho de 1976) simboliza a vitória da linha moderada e a estabilização da autoridade democrática.
-Extinção dos instrumentos revolucionários (COPCON) e encerramento definitivo do ciclo de tutela político-militar sobre o espaço público.
"batalhas" pela memória do 25 de Novembro
A direita liberal-conservadora celebra o 25/11 como “momento fundacional” da democracia representativa que evitou a guerra civil; sectores da esquerda descrevem-no como “golpe” contra a revolução e o “poder popular”. A historiografia recente reconhece a complexidade dos comandos paralelos e das decisões nas horas críticas, sublinhando zonas cinzentas e acordos tácitos.
a minha conclusão: o lugar do 25/11 na nossa “gramática” democrática
O 25 de Novembro foi uma correção de rota: travou um processo revolucionário que já não obedecia à regra do voto e reabriu o caminho constitucional. Politicamente, representou a vitória da ideia de que sem legitimidade eleitoral não há governo legítimo, muito menos com tutela militar. Foi, em suma, a institucionalização do pluralismo sob soberania civil, com a força mínima necessária para impedir a ruptura.
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Anexos úteis para o leitor do futuro
Cronologia resumida
24/11 — Escalada de tensões; decisões sobre comando da RML. (Wikipédia)
Madrugada 25/11 — Pára-quedistas ocupam Ota, Tancos, Monte Real, Montijo e Monsanto; RALIS/EPAM activam-se e a RTP é tomada. (RTP Media)
Tarde 25/11 — Estado de sítio na RML; Comandos iniciam contra-operações; emissões migram para o Porto. (Facebook)
Noite 25/11 → 26/11 — Rendição/recuperação de posições; neutralização da sublevação. (RTP Ensina)
Glossário mínimo
PREC — Processo Revolucionário em Curso (1974–1975).
MFA — Movimento das Forças Armadas
COPCON — Comando Operacional do Continente, estrutura de intervenção do Exército (extinto após 25/11).
5.ª Divisão — Órgão do EMGFA responsável por dinamização cultural e comunicação (desativado em 1975). (RTP Media)
Fontes e leituras recomendadas
RTP Ensina, “25 de Novembro, uma tentativa de golpe falhada” e “Os antecedentes do 25 de Novembro” (cronologia e síntese didáctica). (RTP Ensina)
Diário da República / Arquivo da Presidência: Decreto 670-A/75 (estado de sítio na RML) e registo presidencial. (Arquivo Presidencial)
RTP – Memórias da Revolução, “O desencadear do 25 de Novembro” (ocupações e mapa das bases). (RTP Media)
SIC Notícias, “O que aconteceu a 25 de Novembro de 1975?” (síntese com papel de Otelo/COPCON e distribuição de G-3). (SIC Notícias)
Centro de Documentação 25 de Abril (UC), “25 de Novembro: quantos golpes afinal” (debate historiográfico e comando operacional). (CD25A)
Parlamento / CNE, Constituição de 1976 e eleição presidencial de 1976 (normalização institucional). (Assembleia da República, Comissão Nacional de Eleições)
Le Monde diplomatique (ed. portuguesa), “25 de Novembro: golpe de Estado ou golpe à memória?” (perspectiva crítica sobre a narrativa dominante). (pt.mondediplo.com)

