duas datas-siamesas, dois projectos incompatíveis
Há meio século, Portugal tomou uma decisão de que ainda não tomou plena consciência: quis ser uma democracia liberal ocidental, e não uma “democracia popular” de tipo soviético.
O 25 de Abril de 1974 abriu a porta — derrubou a ditadura, desfez o império, pôs o país em suspensão. O 25 de Novembro de 1975, menos poético e bem menos cómodo, fechou outra porta: a da sovietização lenta, do partido único disfarçado, do “poder popular” comandado a partir de comités e gabinetes. Sem o 25 de Novembro, o 25 de Abril teria acabado, muito provavelmente, num simulacro de pluralismo, com eleições coreografadas e oposição decorativa.¹
Não é por acaso que, em 2024, a Assembleia da República decidiu comemorar anualmente o 25 de Novembro em pé de igualdade com o 25 de Abril — decisão aprovada com votos da direita democrática e contra votos da esquerda que nunca digeriu a derrota do PREC.² A história política portuguesa reconheceu, ainda que tarde e a contragosto, que sem aquele “golpe contra o golpe” de 1975 não haveria Constituição de 1976, eleições livres, alternância pacífica de poder, entrada na CEE, nem muito do que hoje se toma por normalidade democrática
do PREC à encruzilhada: quando a revolução quis dispensar o voto
Entre o Verão de 1975 e Novembro, Portugal viveu numa espécie de febre alta: nacionalizações em catadupa, ocupações de terras e empresas, saneamentos, sequestros de ministros e deputados, governos paralisados, plenários em vez de cadeia de comando.³
O Processo Revolucionário em Curso já não era apenas a digestão difícil de um regime caído; era um projecto político alternativo à democracia representativa.
Alguns marcos desse desvio:
- 11 de Março de 1975, que acelera as nacionalizações e consagra o “povo-MFA” como fórmula mágica para tudo;
- A 5.ª Divisão, o aparelho de propaganda revolucionária dentro das Forças Armadas;
- O COPCON, sob Otelo Saraiva de Carvalho, que se autonomiza como pólo de poder próprio, com mandados em branco, detenções arbitrárias e uma linguagem política de ruptura.⁴
As eleições para a Assembleia Constituinte de Abril de 1975 — as primeiras verdadeiramente livres — foram tratadas por sectores influentes do MFA como um detalhe burguês. O país real, entretanto, olhava com crescente cepticismo. O Norte reagia com terço numa mão e raiva na outra; o campo via nas ocupações uma nova forma de tutela; a classe média urbana percebia o colapso económico iminente.⁵
Chega-se ao Outono de 1975 com São Bento cercado, o Governo Provisório suspenso, as Forças Armadas profundamente divididas, e um projecto revolucionário que já não escondia a tentação de partido único.
O Grupo dos Nove, o Vasco Lourenço e o plano dos moderados
É neste ambiente que surge o Documento dos Nove, liderado por Melo Antunes, em Agosto de 1975: uma recusa frontal do “poder popular” sem sufrágio e a defesa explícita de um caminho pluralista e constitucional.⁶
Entre os signatários estava o Vasco Lourenço, cuja posição evolui decisivamente: até então próximo de Otelo e do COPCON, rompe com essa linha e alinha com os moderados. Essa mudança ganha peso decisivo quando é nomeado comandante da Região Militar de Lisboa em substituição de Otelo.⁷
Em paralelo, o plano operacional para neutralizar uma tentativa de golpe revolucionário é entregue a Ramalho Eanes, que o executa com precisão. O chamado “plano dos coronéis” — expressão mais tarde usada por vários historiadores — consistia em restaurar a cadeia de comando e impedir que forças revolucionárias assumissem controlo do aparelho de Estado.⁸
Não se tratava de instaurar uma ditadura alternativa, mas de impedir que Portugal se transformasse numa “democracia popular” de fachada.
Notas de Fim
1. Ver análise histórica completa: Blog ReVisões, “25 de Novembro: fim do PREC”, e literatura historiográfica recente sobre o papel institucional desse dia.
2. Diário da Assembleia da República, Sessão de 2024 sobre efemérides nacionais.
3. Idem; ver também crónicas de época e relatórios governamentais do VI Governo Provisório.
4. Documentação do EMGFA, 1974–1975. Ver também testemunhos de militares na Comissão de História da República.
5. Estudos sociológicos sobre conflitos no Norte em 1975; ver também arquivos da imprensa regional.
6. “Documento dos Nove”, Agosto de 1975. Arquivo da Biblioteca Nacional.
7. Testemunhos de Vasco Lourenço em entrevistas e debates organizados pelo Instituto de Defesa Nacional.
8. Relatos reunidos em obras de historiadores militares pós-1990.
9. História do Regimento de Comandos, Ministério da Defesa, ed. 2005.
10. Relatos recolhidos em entrevistas com oficiais dos Comandos nos anos 80 e 90.
11. Depoimentos de Jaime Neves e Ramalho Eanes; ver também documentação do Posto de Comando da Amadora.
12. Registos oiciais de baixas e comunicações militares, 25–26 Novembro 1975.
13. Comunicação televisiva de Melo Antunes, RTP, 26 Novembro 1975.
14. Estudos politológicos recentes sobre a relação MFA–PCP; ver também memórias de dirigentes comunistas.
15. Entrevistas de Ramalho Eanes (anos 90) sobre o balanço político do 25 de Novembro.
16. Arquivoda Assembleia Constituinte, 1975–1976.
17. Decreto de reorganização das Forças Armadas pós-1975.
18. Documentos preparatórios da entrada de Portugal na CEE, Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Os Comandos: a reserva moral e operacional da democracia
Num Exército fragmentado por plenários e comités, o Regimento de Comandos da Amadora era um anacronismo. Disciplina, treino real, hierarquia, neutralidade partidária — exactamente o contrário da deriva ideológica dominante.⁹
Pouco se destaca um facto essencial: meses antes do 25 de Novembro, formou-se uma rede discreta de antigos Comandos, desmobilizados da Guerra do Ultramar, que começaram a contactar e organizar ex-militares experientes perante a ameaça de extinção do próprio Regimento. Dessa preparação nasceram duas Companhias de reserva compostas por homens que tinham pendurado a farda, mas não o dever.¹⁰
Quando, na madrugada de 25 de Novembro, pára-quedistas ocupam bases aéreas e posições estratégicas, é a prontidão dos Comandos — reforçados por esses antigos militares — que impede o controlo revolucionário de Lisboa.
O Posto de Comando da Amadora, com Ramalho Eanes a coordenar e Jaime Neves no comando táctico, dispõe exactamente daquilo que faltava à esquerda revolucionária: plano, disciplina e clareza de objectivos. A tomada de Monsanto, o controlo das antenas da Lousã, o cerco aos Lanceiros e a recusa dos Fuzileiros em seguir ordens do COPCON só foram possíveis porque os Comandos mantiveram, mesmo em 1975, a cultura operacional e a neutralidade que o resto das Forças Armadas perdera.¹¹
E convém recordar: o 25 de Novembro não foi um exercício académico. Houve mortos. A guerra civil foi evitada por minutos.¹²
Melo Antunes, o PCP e a opção pelo pluralismo
Outro aspecto frequentemente distorcido: o PCP não foi nem seria ilegalizado.
Pelo contrário: na tarde de 26 de Novembro, é o próprio Melo Antunes que declara, na televisão, que o PCP era “indispensável para a democracia portuguesa”, rejeitando qualquer purga.¹³
O que se derrota não é a existência do PCP, mas a sua estratégia de instrumentalizar sectores armados das Forças Armadas para forçar uma transição para o socialismo de tipo soviético. A historiografia recente descreve mesmo uma espécie de acordo táctico, em que a retirada dos militantes armados permite ao partido permanecer no sistema democrático.¹⁴
O próprio Ramalho Eanes enfatizará mais tarde que os moderados actuaram para impedir a vitória de qualquer extremo — e para permitir que todos os partidos, incluindo o PCP, existissem em regime de pluralismo efectivo.¹⁵
Assim, paradoxalmente, o 25 de Novembro salvou o PCP: evitou que o partido ficasse associado a um golpe falhado e empurrado para a clandestinidade.
25 de Novembro: acto fundador da democracia liberal
O 25 de Novembro produz quatro efeitos estruturantes:
- Fim efectivo do PREC e transição para o processo constitucional que culmina na Constituição de 1976.¹⁶
- Reforço da autoridade presidencial e do Conselho da Revolução como garantes da normalização institucional.¹⁷
- Reinstitucionalização das Forças Armadas, recuperando a neutralidade partidária.
- Definição do lugar de Portugal no Ocidente, abrindo caminho à adesão à CEE em 1986.¹⁸
Sem 25 de Novembro, Portugal dificilmente seria hoje uma democracia liberal com alternância de poder, economia de mercado, liberdade de imprensa e pluralismo efectivo. .
..."a coragem das minorias responsáveis":
O 25 de Novembro ensina uma lição essencial: nem sempre a liberdade é defendida por maiorias entusiasmadas; muitas vezes é salvaguardada por minorias disciplinadas e responsáveis.
Naquele Novembro de 1975, enquanto uns sonhavam com sovietes à beira-Tejo e outros conspiravam para aproveitar o caos, houve quem escolhesse o caminho difícil:
usar a força mínima necessária para restaurar a autoridade democrática e impedir a transformação de Portugal numa democracia popular alinhada com Moscovo.
É tempo de o dizer sem rodeios:
- O 25 de Abril abriu a porta da liberdade.
- O 25 de Novembro impediu que ela fosse trancada por dentro.
- A democracia liberal portuguesa nasce da convergência destas duas datas.
Meio século depois, lembrar o 25 de Novembro é lembrar que a liberdade exige vigilância, coragem e, quando não há alternativa, determinação armada contra quem tenta capturar o destino de todos em nome de alguns.
1. Ver análise histórica completa: Blog ReVisões, “25 de Novembro: fim do PREC”, e literatura historiográfica recente sobre o papel institucional desse dia.
2. Diário da Assembleia da República, Sessão de 2024 sobre efemérides nacionais.
3. Idem; ver também crónicas de época e relatórios governamentais do VI Governo Provisório.
4. Documentação do EMGFA, 1974–1975. Ver também testemunhos de militares na Comissão de História da República.
5. Estudos sociológicos sobre conflitos no Norte em 1975; ver também arquivos da imprensa regional.
6. “Documento dos Nove”, Agosto de 1975. Arquivo da Biblioteca Nacional.
7. Testemunhos de Vasco Lourenço em entrevistas e debates organizados pelo Instituto de Defesa Nacional.
8. Relatos reunidos em obras de historiadores militares pós-1990.
9. História do Regimento de Comandos, Ministério da Defesa, ed. 2005.
10. Relatos recolhidos em entrevistas com oficiais dos Comandos nos anos 80 e 90.
11. Depoimentos de Jaime Neves e Ramalho Eanes; ver também documentação do Posto de Comando da Amadora.
12. Registos oiciais de baixas e comunicações militares, 25–26 Novembro 1975.
13. Comunicação televisiva de Melo Antunes, RTP, 26 Novembro 1975.
14. Estudos politológicos recentes sobre a relação MFA–PCP; ver também memórias de dirigentes comunistas.
15. Entrevistas de Ramalho Eanes (anos 90) sobre o balanço político do 25 de Novembro.
16. Arquivoda Assembleia Constituinte, 1975–1976.
17. Decreto de reorganização das Forças Armadas pós-1975.
18. Documentos preparatórios da entrada de Portugal na CEE, Ministério dos Negócios Estrangeiros.