José António Rodrigues do Carmo percorre esse tempo vertiginoso, do “Verão Quente” ao 25 de novembro, como quem revisita um pesadelo com olhos abertos. Revisito-o com o desconforto de quem entra novamente num quarto onde aconteceu algo mau, mas entra na mesma, curioso, cético, meio incrédulo com o que viveu.
O Portugal de 1975 é um daqueles momentos em que uma nação é projectada para fora dos seus hábitos seculares, atordoada pela súbita liberdade, cercada por ideologias importadas e empurrada para um abismo que poucos viam, mas muitos pressentiam.
Rodrigues do Carmo era apenas um adolescente a tropeçar na realidade da guerra no interior de Angola, empurrado de um lugar para o outro pelo cheiro da pólvora e pela pressa dos outros. Lembra Malange como se fosse uma cidade fantasma: tiroteios sem aviso, ruas onde o caos tinha tomado posse da luz do dia. Depois vieram meses de fuga em cima de camiões poeirentos, noites passadas numa sala de aulas de Nova Lisboa, janelas partidas, espaço dividido entre dezenas de pessoas, e refeições improvisadas, sempre mais escassas do que o apetite.
No fim, quando o país parecia um mapa rasgado, acabei por cair em Lisboa a bordo de um 707 da Força Aérea, mais um retornado entre tantos, trazido à pressa de um continente que nos cuspia para fora. A minha história é apenas uma entre milhares, e talvez um dia a conte inteira. Hoje, basta este fragmento.
Voltando ao livro, o fio condutor da minha colaboração no livre é simples: ou o país se deixava arrastar pelo delírio revolucionário de minorias barulhentas, ou era salvo pelo sangue-frio de alguns militares que decidiram estancar a deriva. No centro desta história, como eixo de gravidade moral, está o Regimento de Comandos e a figura de Jaime Neves.
Depois do 11 de março, neutralizado Spínola, o palco ficou livre para o grande delírio. O Governo de Vasco Gonçalves, com o PCP nos bastidores, queria transformar Portugal num laboratório soviético à beira do Atlântico.
O país encheu-se de siglas, comissões, plenários, frentes de luta, sindicatos. Nacionalizavam-se bancos e jornais ao mesmo ritmo com que se imprimiam panfletos. Fábricas e herdades eram ocupadas no intervalo da bica. A realidade, prosaica combinação de pão, emprego e contas para pagar, era tratada como um pormenor burguês.
Lisboa vivia numa fase maníaca. A rádio, a televisão e a imprensa, em larga medida controladas por militantes comunistas ou afins, repetiam a liturgia do poder popular e do “povo-MFA”. Os plenários revolucionários cruzavam-se com aquele Portugal que só queria saber se haveria bacalhau no Natal.
Este país profundo observava com cepticismo. Não queria sovietes, nem tribunais populares: queria trabalho, futuro, escola para os filhos, alguma ordem. Havia uma distância quase metafísica entre o “povo” invocado nas palavras de ordem e o povo real, concreto, que rezava na igreja e desconfiava da baderna permanente.
Confrontavam-se três grupos militares:
-Os Gonçalvistas, com Vasco Gonçalves à frente do governo e o PCP a dirigir a orquestra, viam as Forças Armadas como instrumento da vanguarda proletária. O objectivo era aprofundar a revolução e alinhar a hierarquia militar com o Comité Central. Os capitães eram ideólogo, os sargentos activistas políticos, e os quartéis bases da revolução.
-Os Copconistas, agrupados em torno de Otelo e do COPCON, encarnavam o romantismo armado. Plenários, civis de arma na mão, sargentos tribunícios, ordens emitidas por comunicados inflamados. Mandavam no RALIS, na PM, na EPAM, nos Paraquedistas, nos Fuzileiros. Era uma espécie de Woodstock fardado, entusiasmado e incompetente.
-O Grupo dos Nove reunia a ala moderada do MFA. Ramalho Eanes, Jaime Neves e outros viam com horror o país a ser arrastado para uma caricatura de revolução socialista. Não rejeitavam a mudança política, mas recusavam o salto para o totalitarismo. O seu músculo operacional era o Regimento de Comandos, o último reduto de disciplina, hierarquia e treino sério, num Exército em dissolução.
Estes três grupos representavam três projectos incompatíveis:
-A utopia de gabinete, sonhando com sovietes à beira-Tejo;
-O teatro revolucionário, ruidoso e errático;
-A discreta preparação para salvar o país da aventura e voltar a meter Abril nos eixos.
O Verão de 1975 foi uma espécie de febre política de 40 graus. Nacionalizações em catadupa, ocupações de terras no Alentejo, saneamentos, sequestro de deputados e até do próprio primeiro-ministro.
No Norte, a reacção popular, terço numa mão, raiva na outra, começou a atacar sedes do PCP. A Igreja saia às ruas, as procissões tornavam-se manifestações anticomunistas. Era o país rural a recordar que o povo poder ser “sereno”, mas a paciência tem limites.
O “poder popular” consolidava-se como máscara oficial da arbitrariedade. Em nome dele expulsavam-se directores, decidia-se em plenários se alguém era fascista, ocupavam-se casas e empresas. No COPCON era o regabofe: mandados em branco, detenções, humilhações públicas. Qualquer crítica podia ser classificada de contrarrevolucionária.
A economia afundava. A banca nacionalizada obedecia mais a consignas partidárias do que a critérios económicos; as empresas, sem crédito nem gestão competente, cambaleavam; a inflação escapava ao controlo. O discurso oficial culpava a “reacção.
O MFA transformara-se num “saco de gatos”: plenários intermináveis, documentos contraditórios, egos em guerra, disciplina esfrangalhada. Para os Comandos, formados na dureza das guerras africanas, aquilo era inaceitável.
Neste cenário de dissolução, o Regimento de Comandos surgia como um anacronismo: treino duro, cadeia de comando respeitada, neutralidade partidária. Enquanto muitas unidades discutiam Marx e Mao, na Amadora treinava-se tiro e queda na máscara.
A figura central era Jaime Neves. Poucas palavras, autoridade natural, aversão ao teatro político. Não se apresentava como guerreiro ideológico, mas como militar consciente de que sem disciplina não há Exército, e sem Exército não há Estado. A esquerda revolucionária via nele o principal obstáculo armado ao caminho para o socialismo.
À volta do Regimento formou-se uma rede de antigos Comandos que calcorrearam o país a recrutar ex-Comandos com experiência operacional. Foram criadas duas Companhias de convocados, que viriam a ser decisivas em novembro.
Os Comandos assumiam-se, assim, como última reserva da sanidade militar. Não eram tribunos, eram homens de acção. O seu código era simples: missão, disciplina, sacrifício se necessário. Num país intoxicado de palavras, essa sobriedade era, por si só, uma revolução.
Entrado novembro, o Grupo dos Nove e o chamado Grupo Militar sabiam que o tempo do improviso estava a terminar e havia sinais claros. Jaime Neves identificou Otelo, o COPCON, o RALIS e a PM como ameaças centrais, avisou o Presidente da República de que os Comandos queriam isto na ordem e exigiu a substituição dos militares que não serviam apartidariamente o Exército. Foi um murro na mesa: ou se restabelece uma cadeia de comando clara, ou vamos ter problemas.
A 24 de Novembro, barricadas da CAP em Rio Maior cortaram a estrada. A tensão era palpável. Já ninguém acreditava que tudo isto fosse apenas mais um episódio de teatro. O país entrou na noite com a sensação de caminhar sobre uma ponte velha, rangendo a cada passo.
De madrugada, o golpe revolucionário arrancou. Às ordens do COPCON, paraquedistas ocuparam bases aéreas (Monte Real, Tancos, Montijo), a 1.ª Região Aérea em Monsanto, o EMFA. O RALIS e a EPAM ocuparam a RTP, a Emissora Nacional e pontos estratégicos. A Marinha preparou desembarques, e os Fuzileiros a defesa do COPCON.
À primeira vista, o tabuleiro favorecia os golpistas: controlavam meios importantes, tinham voz na rádio e na televisão, contavam com o apoio declarado de partidos e sindicatos revolucionários. Mas faltava-lhes o essencial: comando coerente, adesão alargada, plano realista. Muitas unidades titubearam, recusaram ordens, arrastaram os pés. O efeito de arrastamento falhou. A vanguarda avançou, mas o grosso hesitou.
Ao meio-dia, o EMGFA difundiu e um comunicado que designava como “sublevados” os paraquedistas. Aos olhos da população, e de muitos militares, deixavam de ser a “vanguarda da revolução” para se tornarem revoltosos à margem da lei. Costa Gomes decretou o estado de sítio em Lisboa e colocou o COPCON, teoricamente, sob o seu comando directo. Ramalho Eanes assumiu a direcção efectiva das operações e o Grupo Militar ficou institucionalmente legitimado.
A partir daí a disciplina começou a prevalecer sobre o improviso.
Às 18h, o Posto de Comando na Amadora emitiu as primeiras ordens. O Regimento de Comandos recebeu a missão de retomar o GDACI em Monsanto, peça chave no controlo do espaço aéreo e das emissões da RTP.
Jaime Neves partiu à frente de um agrupamento constituído por duas Companhias de Comandos convocados (121 e 122) e por artilharia antiaérea. Cercado o objectivo, utilizou uma arma tão simples quanto decisiva: um megafone e um prazo de quinze minutos para rendição.
Os paraquedistas, mal comandados e conscientes do isolamento, começaram a fugir. Quando terminou o prazo, renderam-se. Não houve um tiro disparado. A tomada de Monsanto, seguida do controlo das antenas da Lousã e da passagem da emissão da RTP para o Porto, marcou o ponto de inflexão: os golpistas perderam o monopólio da narrativa, e o Grupo Militar ganhou a iniciativa operacional.
Pouco depois, o 2.º Batalhão de Fuzileiros recusou as ordens do COPCON e integrou-se na cadeia de comando legítima. O PCP, farejando a derrota, começou discretamente a distanciar-se do golpe. O entusiasmo verbal esfarelava-se perante a realidade da força.
Restava ainda neutralizar o Regimento de Lanceiros, onde se concentravam militares e civis de extrema-esquerda, sob comando de Mário Tomé e outros oficiais. Convites para se apresentarem em Belém foram recusados; um plenário interno substituiu a disciplina. O Grupo Militar concluiu que só a força resolveria o problema.
Ao amanhecer de 26, três colunas de Comandos avançaram para cercar Lanceiros. A intenção de Jaime Neves era a mesma de Monsanto: pressão, demonstração de força, rendição sem combate. Mas a história nunca se deixa programar inteiramente.
Dispararam de Cavalaria 7. O furriel Comando Pires foi morto a tiro. Seguiram-se tiroteios intensos, em que morreram o tenente Coimbra e o aspirante Bagagem. Os Comandos fecharam o cerco, penetraram no dispositivo adversário, e posicionaram-se para bater as casernas.
Aí interveio novamente o sangue-frio de Jaime Neves. Ordenou o cessar-fogo, aproximou-se do portão, exigiu que fosse aberto. Perante a hesitação, uma Chaimite arrombou a entrada. Cercado, sem ligação operacional consistente, Mário Tomé rendeu-se. As armas foram depostas na parada, os principais responsáveis detidos e acabaram em Custóias.
Foi por um triz. Bastariam mais alguns minutos de combate, mais uma ordem exaltada, e o 25 de novembro poderia ter-se transformado em batalha campal, com dezenas ou centenas de mortos. A democracia portuguesa nasceu, aqui, no fio da navalha: entre a firmeza necessária e a violência suficiente.
Ao fim da manhã de 26, o essencial estava decidido. O golpe fracassara. As unidades sublevadas rendiam-se ou voltavam à hierarquia legítima. As emissoras revolucionárias calavam-se. A ameaça de guerra civil recuava.
Os jornais falariam da vitória da ala moderada do MFA. Mas na realidade foi a vitória da disciplina sobre a anarquia, da hierarquia sobre a agitação, da democracia plural sobre a tentação de partido único.
Os Comandos regressaram ao quartel. Não houve desfiles triunfais, nem proclamações de epopeia. Bastava a consciência do dever cumprido. Ramalho Eanes e Jaime Neves sabiam que, muitas vezes, a História escreve-se com aquilo que não chega a acontecer: a guerra civil que não houve, a ditadura “progressista” que não se instalou.
Do lado derrotado, começou a fabricar-se a mitologia da vítima: falar-se-ia em conspirações da CIA, em reacção, em golpe da direita, tudo para encobrir a incapacidade de quem apostou num tudo ou nada, divorciado do país real.
Com o tempo, o 25 de novembro tornou-se uma data embaraçosa. A narrativa oficial preferiu exaltar o 25 de Abril como momento poético, florido, quase incruento, e empurrar para o rodapé a ideia desconfortável de que foi preciso usar armas para impedir que a liberdade fosse substituída por outra forma de tirania.
A Unidade que assumira o risco máximo, o Regimento de Comandos, viria a ser extinta. O país que gosta de celebrar todos os simbolismos, do futebol às efemérides, tratou o 25 de novembro com um silêncio envergonhado. A esquerda revolucionária manteve o dia como ferida simbólica; a democracia instalada preferiu não melindrar sensibilidades.
Nesse processo, a figura de Jaime Neves foi sendo empurrada para a penumbra: demasiado incómodo para a mitologia de um Abril linear e imaculado, demasiado duro para caber nas versões adocicadas da transição. E, contudo, falar de 1975 sem falar dele é amputar a realidade.
O paradoxo é claro: Portugal deve a sua democracia tanto ao gesto libertador de Abril, como ao grito de revolta de Novembro. Se o primeiro abriu as portas, o segundo impediu que elas fossem trancadas por dentro por um novo poder totalitário. A liberdade que as gerações seguintes tomaram como normal, foi garantida por homens que, num dado momento, decidiram apontar espingardas, aos que pretendiam sequestrar o povo em nome próprio.
Que lição permanece, meio século depois?
Em primeiro lugar, que a democracia não é um estado natural, mas uma construção frágil, que exige instituições sólidas, forças armadas apartidárias e minorias de responsabilidade dispostas a agir quando a multidão se entrega ao delírio.
Em segundo lugar, que as revoluções não se medem pela intensidade das palavras de ordem, mas pela capacidade de, findo o tumulto, garantir a liberdade real: eleições honestas, alternância, pluralismo. Tudo isso teria sido impossível se o golpe revolucionário de 1975 tivesse vencido. Portugal seria hoje mais parecido com uma “democracia popular” do Leste de então, do que com um país integrado na Europa democrática.
Em terceiro lugar, que o esquecimento não é neutro. Ao diluir o 25 de novembro em polémicas partidárias ou em silêncio constrangido, o país recusa reconhecer a sua própria biografia completa. Prefere o conforto de um mito linear, do fascismo à liberdade em linha recta, a aceitar a verdade mais complexa: a liberdade nasceu de um processo irregular, com avanços, perigos e um momento decisivo em que foi necessário dizer “não” de armas na mão.
Por fim, permanece a imagem de um grupo de homens, os Comandos, que, numa madrugada e num dia, seguraram o país à beira do abismo. Não pediram estátuas, nem feriados, nem hinos. Ficaram apenas satisfeitos por garantir que Portugal continuasse a existir como comunidade livre.
O resto, as narrativas, as omissões, as justificações posteriores, são apenas a espuma que a História levanta à superfície. O fundo, o que importa, é esta realidade: em novembro de 1975, diante da alternativa entre o delírio e a responsabilidade, houve quem escolhesse a segunda e empunhasse armas. É a essa escolha corajosa que a democracia portuguesa deve a sua continuidade.

