sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Quando o “comentariado” brinca às casinhas

a propósito do excelente artigo de opinião de Rui Ramos no Observador que olha para o comentariado para o jornalistado:
Há muito tempo que o país tem falta de debates sérios. 
Não falta é a outra fauna: aquela espécie de ornitologia opinativa que, em vez de olhar para o que importa, prefere debicar nos rótulos — “moderado”, “radical”, “antissistema”, “centro‑esquerda com travo a citrinos”… A verdade é que, para boa parte dos nossos “analistas”, a política não passa de um passatempo tolo, uma espécie de Sudoku ideológico para preencher colunas de jornal e horas mortas de televisão.
É por isso que vale a pena sublinhar que estas presidenciais não são, na primeira volta, sobre perfis presidenciais. Não são sobre poses e fotografias oficiais. São sobre força política. Ponto.
Enquanto Ramos descreve o óbvio com a limpidez do costume, os nossos especialistas continuam entretidos a medir sobrancelhas presidenciais, a avaliar sorrisos e a discutir empatia — como se estivéssemos num casting televisivo e não perante um país que desde 2005 vive a metabolizar crises sucessivas.
O diagnóstico é certeiro: o país está demasiado instável e saturado para perder tempo com frivolidades. E, no entanto, é exactamente isso que o “comentariado” faz: perde tempo.
Perde tempo a fingir que estas eleições têm algo de “normalidade republicana”, quando toda a gente percebe que a primeira volta será um gigantesco teste de força partidária.
Lembro o essencial:
– Votar em André Ventura será votar no único discurso que mantém vivas as preocupações que muitos querem silenciar.
– Votar em Marques Mendes será votar na confortável tibieza do PSD.
– Votar em António José Seguro será votar na hipótese de o PS se libertar da herança tóxica de Sócrates e Costa.
e
Duas ideias decisivas:
1. O debate não pode expulsar as inquietações fundamentais do país. O candidato do CHEGA é a garantia de que a imigração e a insegurança não são varridas para debaixo do tapete.
2. Ou Portugal encontra uma esquerda lúcida e adulta, ou continuará a carregar às costas os restos do PREC misturados com wokismo importado e caciquismo paroquial.

Enfim, concordo que Rui Ramos faz aquilo que o “comentariado” não consegue: 
observa o país como ele é, não como as redacções gostariam que fosse.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

...e o 25 de Novembro existiria sem JAIME NEVES?

José António Rodrigues do Carmo percorre esse tempo vertiginoso, do “Verão Quente” ao 25 de novembro, como quem revisita um pesadelo com olhos abertos. Revisito-o com o desconforto de quem entra novamente num quarto onde aconteceu algo mau, mas entra na mesma, curioso, cético, meio incrédulo com o que viveu.
O Portugal de 1975 é um daqueles momentos em que uma nação é projectada para fora dos seus hábitos seculares, atordoada pela súbita liberdade, cercada por ideologias importadas e empurrada para um abismo que poucos viam, mas muitos pressentiam.

Rodrigues do Carmo era apenas um adolescente a tropeçar na realidade da guerra no interior de Angola, empurrado de um lugar para o outro pelo cheiro da pólvora e pela pressa dos outros. Lembra Malange como se fosse uma cidade fantasma: tiroteios sem aviso, ruas onde o caos tinha tomado posse da luz do dia. Depois vieram meses de fuga em cima de camiões poeirentos, noites passadas numa sala de aulas de Nova Lisboa, janelas partidas, espaço dividido entre dezenas de pessoas, e refeições improvisadas, sempre mais escassas do que o apetite.
No fim, quando o país parecia um mapa rasgado, acabei por cair em Lisboa a bordo de um 707 da Força Aérea, mais um retornado entre tantos, trazido à pressa de um continente que nos cuspia para fora. A minha história é apenas uma entre milhares, e talvez um dia a conte inteira. Hoje, basta este fragmento.
Voltando ao livro, o fio condutor da minha colaboração no livre é simples: ou o país se deixava arrastar pelo delírio revolucionário de minorias barulhentas, ou era salvo pelo sangue-frio de alguns militares que decidiram estancar a deriva. No centro desta história, como eixo de gravidade moral, está o Regimento de Comandos e a figura de Jaime Neves.
Depois do 11 de março, neutralizado Spínola, o palco ficou livre para o grande delírio. O Governo de Vasco Gonçalves, com o PCP nos bastidores, queria transformar Portugal num laboratório soviético à beira do Atlântico.
O país encheu-se de siglas, comissões, plenários, frentes de luta, sindicatos. Nacionalizavam-se bancos e jornais ao mesmo ritmo com que se imprimiam panfletos. Fábricas e herdades eram ocupadas no intervalo da bica. A realidade, prosaica combinação de pão, emprego e contas para pagar, era tratada como um pormenor burguês.
Lisboa vivia numa fase maníaca. A rádio, a televisão e a imprensa, em larga medida controladas por militantes comunistas ou afins, repetiam a liturgia do poder popular e do “povo-MFA”. Os plenários revolucionários cruzavam-se com aquele Portugal que só queria saber se haveria bacalhau no Natal.
Este país profundo observava com cepticismo. Não queria sovietes, nem tribunais populares: queria trabalho, futuro, escola para os filhos, alguma ordem. Havia uma distância quase metafísica entre o “povo” invocado nas palavras de ordem e o povo real, concreto, que rezava na igreja e desconfiava da baderna permanente.
Confrontavam-se três grupos militares:
-Os Gonçalvistas, com Vasco Gonçalves à frente do governo e o PCP a dirigir a orquestra, viam as Forças Armadas como instrumento da vanguarda proletária. O objectivo era aprofundar a revolução e alinhar a hierarquia militar com o Comité Central. Os capitães eram ideólogo, os sargentos activistas políticos, e os quartéis bases da revolução.
-Os Copconistas, agrupados em torno de Otelo e do COPCON, encarnavam o romantismo armado. Plenários, civis de arma na mão, sargentos tribunícios, ordens emitidas por comunicados inflamados. Mandavam no RALIS, na PM, na EPAM, nos Paraquedistas, nos Fuzileiros. Era uma espécie de Woodstock fardado, entusiasmado e incompetente.
-O Grupo dos Nove reunia a ala moderada do MFA. Ramalho Eanes, Jaime Neves e outros viam com horror o país a ser arrastado para uma caricatura de revolução socialista. Não rejeitavam a mudança política, mas recusavam o salto para o totalitarismo. O seu músculo operacional era o Regimento de Comandos, o último reduto de disciplina, hierarquia e treino sério, num Exército em dissolução.
Estes três grupos representavam três projectos incompatíveis:
-A utopia de gabinete, sonhando com sovietes à beira-Tejo;
-O teatro revolucionário, ruidoso e errático;
-A discreta preparação para salvar o país da aventura e voltar a meter Abril nos eixos.

O Verão de 1975 foi uma espécie de febre política de 40 graus. Nacionalizações em catadupa, ocupações de terras no Alentejo, saneamentos, sequestro de deputados e até do próprio primeiro-ministro.
No Norte, a reacção popular, terço numa mão, raiva na outra, começou a atacar sedes do PCP. A Igreja saia às ruas, as procissões tornavam-se manifestações anticomunistas. Era o país rural a recordar que o povo poder ser “sereno”, mas a paciência tem limites.
O “poder popular” consolidava-se como máscara oficial da arbitrariedade. Em nome dele expulsavam-se directores, decidia-se em plenários se alguém era fascista, ocupavam-se casas e empresas. No COPCON era o regabofe: mandados em branco, detenções, humilhações públicas. Qualquer crítica podia ser classificada de contrarrevolucionária.
A economia afundava. A banca nacionalizada obedecia mais a consignas partidárias do que a critérios económicos; as empresas, sem crédito nem gestão competente, cambaleavam; a inflação escapava ao controlo. O discurso oficial culpava a “reacção.

O MFA transformara-se num “saco de gatos”: plenários intermináveis, documentos contraditórios, egos em guerra, disciplina esfrangalhada. Para os Comandos, formados na dureza das guerras africanas, aquilo era inaceitável.
Neste cenário de dissolução, o Regimento de Comandos surgia como um anacronismo: treino duro, cadeia de comando respeitada, neutralidade partidária. Enquanto muitas unidades discutiam Marx e Mao, na Amadora treinava-se tiro e queda na máscara.
A figura central era Jaime Neves. Poucas palavras, autoridade natural, aversão ao teatro político. Não se apresentava como guerreiro ideológico, mas como militar consciente de que sem disciplina não há Exército, e sem Exército não há Estado. A esquerda revolucionária via nele o principal obstáculo armado ao caminho para o socialismo.
À volta do Regimento formou-se uma rede de antigos Comandos que calcorrearam o país a recrutar ex-Comandos com experiência operacional. Foram criadas duas Companhias de convocados, que viriam a ser decisivas em novembro.
Os Comandos assumiam-se, assim, como última reserva da sanidade militar. Não eram tribunos, eram homens de acção. O seu código era simples: missão, disciplina, sacrifício se necessário. Num país intoxicado de palavras, essa sobriedade era, por si só, uma revolução.
Entrado novembro, o Grupo dos Nove e o chamado Grupo Militar sabiam que o tempo do improviso estava a terminar e havia sinais claros. Jaime Neves identificou Otelo, o COPCON, o RALIS e a PM como ameaças centrais, avisou o Presidente da República de que os Comandos queriam isto na ordem e exigiu a substituição dos militares que não serviam apartidariamente o Exército. Foi um murro na mesa: ou se restabelece uma cadeia de comando clara, ou vamos ter problemas.
A 24 de Novembro, barricadas da CAP em Rio Maior cortaram a estrada. A tensão era palpável. Já ninguém acreditava que tudo isto fosse apenas mais um episódio de teatro. O país entrou na noite com a sensação de caminhar sobre uma ponte velha, rangendo a cada passo.
De madrugada, o golpe revolucionário arrancou. Às ordens do COPCON, paraquedistas ocuparam bases aéreas (Monte Real, Tancos, Montijo), a 1.ª Região Aérea em Monsanto, o EMFA. O RALIS e a EPAM ocuparam a RTP, a Emissora Nacional e pontos estratégicos. A Marinha preparou desembarques, e os Fuzileiros a defesa do COPCON.
À primeira vista, o tabuleiro favorecia os golpistas: controlavam meios importantes, tinham voz na rádio e na televisão, contavam com o apoio declarado de partidos e sindicatos revolucionários. Mas faltava-lhes o essencial: comando coerente, adesão alargada, plano realista. Muitas unidades titubearam, recusaram ordens, arrastaram os pés. O efeito de arrastamento falhou. A vanguarda avançou, mas o grosso hesitou.
Ao meio-dia, o EMGFA difundiu e um comunicado que designava como “sublevados” os paraquedistas. Aos olhos da população, e de muitos militares, deixavam de ser a “vanguarda da revolução” para se tornarem revoltosos à margem da lei. Costa Gomes decretou o estado de sítio em Lisboa e colocou o COPCON, teoricamente, sob o seu comando directo. Ramalho Eanes assumiu a direcção efectiva das operações e o Grupo Militar ficou institucionalmente legitimado.
A partir daí a disciplina começou a prevalecer sobre o improviso.
Às 18h, o Posto de Comando na Amadora emitiu as primeiras ordens. O Regimento de Comandos recebeu a missão de retomar o GDACI em Monsanto, peça chave no controlo do espaço aéreo e das emissões da RTP.
Jaime Neves partiu à frente de um agrupamento constituído por duas Companhias de Comandos convocados (121 e 122) e por artilharia antiaérea. Cercado o objectivo, utilizou uma arma tão simples quanto decisiva: um megafone e um prazo de quinze minutos para rendição.
Os paraquedistas, mal comandados e conscientes do isolamento, começaram a fugir. Quando terminou o prazo, renderam-se. Não houve um tiro disparado. A tomada de Monsanto, seguida do controlo das antenas da Lousã e da passagem da emissão da RTP para o Porto, marcou o ponto de inflexão: os golpistas perderam o monopólio da narrativa, e o Grupo Militar ganhou a iniciativa operacional.
Pouco depois, o 2.º Batalhão de Fuzileiros recusou as ordens do COPCON e integrou-se na cadeia de comando legítima. O PCP, farejando a derrota, começou discretamente a distanciar-se do golpe. O entusiasmo verbal esfarelava-se perante a realidade da força.
Restava ainda neutralizar o Regimento de Lanceiros, onde se concentravam militares e civis de extrema-esquerda, sob comando de Mário Tomé e outros oficiais. Convites para se apresentarem em Belém foram recusados; um plenário interno substituiu a disciplina. O Grupo Militar concluiu que só a força resolveria o problema.
Ao amanhecer de 26, três colunas de Comandos avançaram para cercar Lanceiros. A intenção de Jaime Neves era a mesma de Monsanto: pressão, demonstração de força, rendição sem combate. Mas a história nunca se deixa programar inteiramente.
Dispararam de Cavalaria 7. O furriel Comando Pires foi morto a tiro. Seguiram-se tiroteios intensos, em que morreram o tenente Coimbra e o aspirante Bagagem. Os Comandos fecharam o cerco, penetraram no dispositivo adversário, e posicionaram-se para bater as casernas.
Aí interveio novamente o sangue-frio de Jaime Neves. Ordenou o cessar-fogo, aproximou-se do portão, exigiu que fosse aberto. Perante a hesitação, uma Chaimite arrombou a entrada. Cercado, sem ligação operacional consistente, Mário Tomé rendeu-se. As armas foram depostas na parada, os principais responsáveis detidos e acabaram em Custóias.
Foi por um triz. Bastariam mais alguns minutos de combate, mais uma ordem exaltada, e o 25 de novembro poderia ter-se transformado em batalha campal, com dezenas ou centenas de mortos. A democracia portuguesa nasceu, aqui, no fio da navalha: entre a firmeza necessária e a violência suficiente.
Ao fim da manhã de 26, o essencial estava decidido. O golpe fracassara. As unidades sublevadas rendiam-se ou voltavam à hierarquia legítima. As emissoras revolucionárias calavam-se. A ameaça de guerra civil recuava.
Os jornais falariam da vitória da ala moderada do MFA. Mas na realidade foi a vitória da disciplina sobre a anarquia, da hierarquia sobre a agitação, da democracia plural sobre a tentação de partido único.
Os Comandos regressaram ao quartel. Não houve desfiles triunfais, nem proclamações de epopeia. Bastava a consciência do dever cumprido. Ramalho Eanes e Jaime Neves sabiam que, muitas vezes, a História escreve-se com aquilo que não chega a acontecer: a guerra civil que não houve, a ditadura “progressista” que não se instalou.
Do lado derrotado, começou a fabricar-se a mitologia da vítima: falar-se-ia em conspirações da CIA, em reacção, em golpe da direita, tudo para encobrir a incapacidade de quem apostou num tudo ou nada, divorciado do país real.
Com o tempo, o 25 de novembro tornou-se uma data embaraçosa. A narrativa oficial preferiu exaltar o 25 de Abril como momento poético, florido, quase incruento, e empurrar para o rodapé a ideia desconfortável de que foi preciso usar armas para impedir que a liberdade fosse substituída por outra forma de tirania.
A Unidade que assumira o risco máximo, o Regimento de Comandos, viria a ser extinta. O país que gosta de celebrar todos os simbolismos, do futebol às efemérides, tratou o 25 de novembro com um silêncio envergonhado. A esquerda revolucionária manteve o dia como ferida simbólica; a democracia instalada preferiu não melindrar sensibilidades.
Nesse processo, a figura de Jaime Neves foi sendo empurrada para a penumbra: demasiado incómodo para a mitologia de um Abril linear e imaculado, demasiado duro para caber nas versões adocicadas da transição. E, contudo, falar de 1975 sem falar dele é amputar a realidade.

O paradoxo é claro: Portugal deve a sua democracia tanto ao gesto libertador de Abril, como ao grito de revolta de Novembro. Se o primeiro abriu as portas, o segundo impediu que elas fossem trancadas por dentro por um novo poder totalitário. A liberdade que as gerações seguintes tomaram como normal, foi garantida por homens que, num dado momento, decidiram apontar espingardas, aos que pretendiam sequestrar o povo em nome próprio.
Que lição permanece, meio século depois?
Em primeiro lugar, que a democracia não é um estado natural, mas uma construção frágil, que exige instituições sólidas, forças armadas apartidárias e minorias de responsabilidade dispostas a agir quando a multidão se entrega ao delírio.
Em segundo lugar, que as revoluções não se medem pela intensidade das palavras de ordem, mas pela capacidade de, findo o tumulto, garantir a liberdade real: eleições honestas, alternância, pluralismo. Tudo isso teria sido impossível se o golpe revolucionário de 1975 tivesse vencido. Portugal seria hoje mais parecido com uma “democracia popular” do Leste de então, do que com um país integrado na Europa democrática.
Em terceiro lugar, que o esquecimento não é neutro. Ao diluir o 25 de novembro em polémicas partidárias ou em silêncio constrangido, o país recusa reconhecer a sua própria biografia completa. Prefere o conforto de um mito linear, do fascismo à liberdade em linha recta, a aceitar a verdade mais complexa: a liberdade nasceu de um processo irregular, com avanços, perigos e um momento decisivo em que foi necessário dizer “não” de armas na mão.
Por fim, permanece a imagem de um grupo de homens, os Comandos, que, numa madrugada e num dia, seguraram o país à beira do abismo. Não pediram estátuas, nem feriados, nem hinos. Ficaram apenas satisfeitos por garantir que Portugal continuasse a existir como comunidade livre.
O resto, as narrativas, as omissões, as justificações posteriores, são apenas a espuma que a História levanta à superfície. O fundo, o que importa, é esta realidade: em novembro de 1975, diante da alternativa entre o delírio e a responsabilidade, houve quem escolhesse a segunda e empunhasse armas. É a essa escolha corajosa que a democracia portuguesa deve a sua continuidade.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Mudou o sotaque, não mudou a receita.

Os camaradas voltaram.
Há fenómenos políticos que não exigem grande erudição para serem detectados. Basta ligar a televisão, passar os olhos pelo feed, ou assistir a um debate onde três comentadores de esquerda discutem entre si qual deles é menos de direita. A moda, hoje, é afirmar que “os camaradas estão de volta”. Na verdade, eles nunca foram embora; apenas trocaram de disfarce. Durante uns anos chamaram-se woke, progressistas, interseccionais, faquires da linguagem inclusiva. Agora, que o vento eleitoral mudou, recuperam a designação clássica — a que dá lustro, autoridade e cheiro a PREC: “camaradas”[6].
E o país, como de costume, “cá está às ordens”.
O texto que me serve de ponto de partida descreve bem esta mutação súbita: os “camarados” (versão eduardiana), os “camarades” (versão parisiense), e os “todes” (versão TikTok) desapareceram num ápice. A extrema-esquerda lá fez o seu congresso interno de marketing — provavelmente organizado por um desses centros de produção ideológica saídos directamente do manual de guerra cultural — e decidiu que era tempo de abandonar o carnaval linguístico e regressar ao velho fardamento revolucionário. Como quem diz: acabou a brincadeira, agora é a sério.
Quando o eleitorado foge, regressa o manual do PREC
A explicação é simples: perderam eleições, perderam votos, perderam juventude, perderam paciência e perceberam que a guerra cultural do “todes”, do “género fluido” e da “palmada opressora” não lhes rendeu mais do que umas palminhas internas[5]. A realidade entrou-lhes pela porta adentro: desemprego crescente, salários estagnados, insegurança nas ruas, imigração descontrolada, e um povo que já não engole a pastilha da “culpa estrutural”.

Quando a esquerda percebe que está a ser abandonada pelos seus próprios órfãos sociológicos, faz aquilo que sempre fez quando a maré eleitoral desce: regressa ao Gramscismo de raiz[1].
Sim, o Gramscismo — essa colónia permanente no imaginário revolucionário — que ensina que é preciso dominar o espaço cultural antes de se dominar o espaço político.
Hoje o processo repete-se, apenas com nova embalagem: as mesmas palavras de ordem, os mesmos apelos à “luta”, o mesmo desprezo pela História quando lhes convém, e a mesma desmemória selectiva que lhes permite apagar as asneiras de ontem[3], como se nunca tivessem existido.
O privilégio supremo: o direito à desmemória
Queixam-se muito da “extrema-direita”, mas praticam o maior dos extremismos: o de exigir que a memória colectiva seja reformatada a cada ano eleitoral.

Ontem tínhamos de tratar toda a gente por “todes”, hoje quem o fizer é antiquado e burguês; ontem o wokismo era a bandeira, hoje é sinal de decadência urbana; ontem o inimigo era o patriarcado, hoje é o “neoliberalismo”. Amanhã será o algoritmo opressor do telemóvel.
Este mecanismo é velho. Muito velho. E extremamente eficaz.
Foi praticado já no PREC, foi reciclado nos anos 80 e 90, e regressa agora com as mesmas notas, apenas tocadas num instrumento digital[2].

A pergunta é sempre a mesma:
Como é possível que esta rotatividade ideológica nunca seja julgada pelo que prometeu, executou ou destruiu?
Resposta simples:
porque o progressismo goza do seu privilégio supremo — o direito à desmemória.

E porque ocupou, durante décadas, as estruturas que regulam esse mesmo processo de memória e esquecimento: escolas, editoras, jornalismo, universidades e, agora, plataformas de entretenimento para adolescentes[8].
O país real observa; o país mediático obedece
Enquanto isto, o país real — aquele que trabalha, paga contas, sente insegurança nas ruas, vive longe da espuma — assiste ao espetáculo com crescente irritação. O país mediático, esse, limita-se a obedecer. A cada nova injunção moral, a cada nova moda revolucionária reciclada, jornalistas e comentadores alinham como se a coisa fosse produto de reflexão profunda e não simples sobrevivência estratégica:
E é aqui que entra o elemento mais triste — e por vezes, o mais cómico:
há uma direita, aquela que o texto original muito justamente designa como a “direita mais estúpida”, que se apressa sempre a seguir a pauta da esquerda[9]. A esquerda define o terreno; a direita corre atrás, ansiosa por provar que “não é radical”, que “não é perigosa”, que “não é populista”. Resultado? Perde sempre. Até quando tem razão.
Não perceberam que o crescimento do Chega provém exactamente do contrário: da recusa frontal em obedecer ao guião que a esquerda lhes empurra há cinquenta anos[7].

Do wokismo à luta de classes: o círculo completo
Agora, apercebendo-se de que a utopia identitária lhes retirou votos — especialmente entre jovens e trabalhadores —, os velhos revolucionários decidiram regressar à luta de classes 2.0[10].A retórica inflama-se novamente, os “patrões” reaparecem como vilões omnipresentes, e as televisões juvenis recuperam o vocabulário da década de 70, mas com grafismo de videojogo. Nada disto é convicção; é desespero estratégico.
Quando nada resulta, regressa-se ao básico: bandeiras vermelhas, punhos erguidos e discursos sobre “reacções fascistas”[11]. Sinal clássico de que perceberam que perderam terreno e precisam reanimar a tropa.

Voltaram os camaradas, mas os problemas ficaram...
O retorno dos “camaradas” não é renascimento ideológico. É, antes, a mais recente operação de cosmética de um movimento político que perdeu contacto com o país real e com as prioridades reais das pessoas. Podem mudar o pronome, a bandeira, a palavra de ordem; o que não conseguem mudar é a realidade — e essa insiste em contradizê-los.

E enquanto reciclam o PREC, actualizam o Gramscismo e exigem desmemória colectiva, Portugal continua a enfrentar exactamente os mesmos problemas: insegurança, pressão migratória, salários baixos, custo de vida, rupturas culturais e um Estado que já não consegue garantir o básico.
Mas o país não precisa de camaradas reciclados.
Precisa de verdade, memória, responsabilidade e coragem moral.
Coisas que não se encontram, infelizmente, nem nos manuais gramscistas nem nas novas televisões de activismo juvenil.

Notas
[1] Gramscismo cultural — o termo, usado por simplificação jornalística, não corresponde literalmente ao conceito formulado por Antonio Gramsci, mas descreve correctamente a estratégia que muitos partidos e movimentos progressistas adoptaram desde os anos 70: conquistar hegemonia moral e cultural antes de disputar o poder político. Em Portugal, o PREC tratou de adaptar o método à portuguesa, com bandeirinhas, megafones e um imprevisível exotismo tropical à mistura.
[2] A súbita substituição de modas ideológicas — do wokismo para a “luta de classes 2.0” — não resulta de reflexão, mas de aritmética: perderam votos, perderam juventude, perderam influência. Não é uma reinvenção; é uma operação de sobrevivência. Como em 1989, quando a queda do Muro obrigou muitos revolucionários a trocar o lenço vermelho pelo curso de ciências políticas.
[3] O “direito à desmemória” é uma das mais fascinantes invenções políticas do progressismo contemporâneo. Implica a exigência de que todos aceitem como verdade universal aquilo que eles afirmaram ontem, e ao mesmo tempo aceitem como igualmente universal aquilo que eles afirmam hoje — mesmo que seja o exacto contrário.
[4] A técnica não é nova: nos anos 70, muitos dos futuros dirigentes do jornalismo e da academia mudaram de linha política com a mesma facilidade com que mudavam de slogan. Num dia “A luta continua”, no dia seguinte “Somos europeístas moderados”. A vantagem é óbvia: nunca precisam de fazer balanço crítico do que disseram ou fizeram.
[5] Wokismo — importação americana que chegou às universidades portuguesas com atraso, como quase tudo. Entre nós, consolidou-se sobretudo nas humanidades, em projectos subsidiados e nas redacções que confundem “activismo” com jornalismo. Durou o tempo suficiente para desgastar quem o defendia e irritar quem era obrigado a suportá-lo.
[6] Sobre a constante “recauchutagem” de velhos militantes do PREC em novos papéis mediáticos: nada mais representativo do que a sucessão de comentadores que descobriram que, aos 70 anos, são afinal “radicais modernos”. A idade não lhes trouxe sabedoria, mas trouxe-lhes lugar cativo em debates televisivos onde continuam a falar como se fosse 1975.
[7] A desorientação da esquerda perante o crescimento do Chega confirma um facto simples: habituaram-se tanto a controlar a agenda que já não sabem lidar com a perda do monopólio moral. Durante décadas foram eles que definiam o que era legítimo, aceitável ou moderado; hoje, descobrem que há milhões de portugueses que recusam esse tribunal ideológico.
[8] As novas televisões para jovens — plataformas supostamente educativas que, na prática, funcionam como viveiros de futuros militantes culturais. São a actualização do velho método gramscista de ocupar a imaginação dos mais novos, agora com legendas coloridas, humor de TikTok e debates sobre micro-opressões.
[9] A incapacidade de parte da direita em rejeitar a “agenda” imposta pela esquerda merece um estudo sociológico sério. Há uma direita que, receando ser confundida com a direita, prefere lutar para ser aceite pela esquerda. Esforço vão: nunca serão aceites e perdem sempre os seus próprios eleitores.
[10] O retorno à luta de classes — ainda que em versão pós-moderna — é a última tentativa de recuperar um eleitorado que já não se revê em causas identitárias. Não é convicção; é desespero estratégico. Como mudar o letreiro da loja porque o negócio está falido.
[11] Não é coincidência que, sempre que a esquerda enfrenta dificuldades eleitorais, ressurgem discursos inflamados sobre “direitos adquiridos”, “capitalistas”, “patões”, ou “forças reaccionárias”. São palavras-chave de stock, prontas a sair do armário sempre que a noite eleitoral corre mal.
[12] O país real — aquele que trabalha, paga contas, sente insegurança nas ruas e vive longe da espuma mediática — é sempre o grande ausente destes exercícios de reinvenção ideológica. Mas é precisamente esse país real que já não está disposto a ser catequizado. 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Obrigado, “retornados”!

Cinquenta anos depois, se calhar já podemos dizer o óbvio: a esquerda tratou meio milhão de portugueses com mais desumanidade do que agora acusa a direita, toda ela, de lidar com os estrangeiros.
(Nuno Gonçalo Poças)

Chamaram-lhe “Ponte Aérea”, mas foi uma espécie de “aterragem forçada” de vidas inteiras. Há cinquenta anos terminava a maior operação de evacuação aérea da história portuguesa, com cerca de meio milhão de portugueses, caídos literalmente do céu, a chegar à capital de um império que então se extinguia.
Vieram essencialmente de Angola e Moçambique com pouco, e muitos com quase nada. Um cartão de embarque, uma pasta com documentos, caixotes com os seus bens que nunca mais viram, filhos ao colo e vidas às costas. Tinham nomes, histórias, profissões, raízes, cultura e vistas largas. Perderam quase tudo. Ganharam um nome: retornados.

Portugal, então recém-saído da ditadura e mergulhado na anarquia revolucionária de um PREC sem bússola, olhou para este meio milhão de concidadãos com desconfiança e hostilidade. Tinham sido colonos, diziam. Eram ricos, exploradores, “os do Ultramar”. Fascistas, naturalmente. Foram um dos inimigos fáceis da sede revolucionária, com a agravante de não terem sequer mecanismos para reagir.

Mas o mais notável em toda a história do regresso dos nacionais a Lisboa não foi a hostilidade com que foram recebidos, mas o que os próprios fizeram com a ostracização a que foram sujeitos. Não se tornaram reféns da vitimização, deitaram mãos à obra. Os portugueses que vinham das colónias sabiam que o mundo acaba num horizonte largo, e não ao fundo do Chiado. Trouxeram hábitos, capacidade de trabalho, cultura de gestão, formas de estar, até palavras novas. Abriram cafés, empresas, oficinas, fábricas. Reconstruíram-se contra a cultura hegemónica, sempre marxista, e fizeram-no sem pedir favores; sem subsídios, sem planos estratégicos. Fizeram o que faz quem não tem alternativa, que é sempre a maior das forças motoras, num país que estava habituado a não fazer nada ou a fazer muito pouco.
Os “retornados” continuam a ser uma ferida mal contada da nossa memória colectiva. Nunca houve um esforço sério para integrar a sua história na narrativa do regime. Continuam, talvez, a ser estranhos num país de gente amorfa. Talvez porque nos expõem as fraquezas, e exibem, sem contemplações, a desumanidade do progressismo revolucionário.
Cinquenta anos depois, se calhar já podemos dizer o óbvio: a esquerda tratou meio milhão de portugueses com mais desumanidade do que agora acusa a direita, toda ela, de lidar com os estrangeiros. Em Portugal, onde toda a gente aprecia apregoar a sua bondade e gosta de se compadecer de tudo, subsiste um manto de silêncio oficial e oficioso para quem perdeu tudo e recomeçou tudo. Talvez porque não aceitaram o rótulo de vítimas, a única categoria que um país injectado de vulgata marxista aprecia.

O 50.º aniversário da Ponte Aérea devia ser um marco nacional. Não para reabrir feridas, mas para agradecer. Para dizer obrigado a quem chegou com medo e ainda assim teve coragem. Obrigado a quem foi insultado e não desistiu. Obrigado a quem transformou a sua desgraça pessoal numa força colectiva.
Num tempo em que se debate tanto a identidade, o acolhimento e os direitos, talvez seja boa ideia começar por fazer justiça a quem sempre foi da casa e nunca teve direito a entrar pela porta da frente.

 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

a primeira grande derrota do PCP, ou o princípio do fim do PREC. II

O PRINCíPIO DO FIM - Há 50 anos, a 5 de Setembro de 1975, acontecia a primeira grande derrota do PCP, o princípio do fim do PREC. Tratou se da Assembleia do MFA ou também conhecida, entre os derrotados como o pronunciamento de Tancos. 

Em Setembro, o governo comunista de Vasco Gonçalves estava moribundo, sem qualquer força política. Costa Gomes quando o nomeou alertou que seria um governo a prazo. Ainda com a legitimidade revolucionária a sobrepor-se à legitimidade democrática, o governo, mesmo que provisório, não possuia qualquer representatividade política, ao invés era um governo de um único partido, o PCP.
Infelizmente isso não significou, no imediato, uma travagem nas nacionalizações, ocupações de terras, saneamentos ou prisões sem validação de um juiz e na maioria dos casos com mandados de captura em branco. Desde que o PS e PSD tinham saído do Governo, o PCP sentia que teria pouco tempo para transformar Portugal no país dos Sovietes. Costa Gomes foi claramente o seu maior cúmplice e ainda hoje não sabemos o propósito, se para permitir a entrega de Angola aos comunistas do MPLA, se para garantir que todo o Alentejo se tornava numa enorme Unidade Cooperativa de Produção: em Julho, Agosto e Setembro ocuparam-se mais de 200 mil hectares ou para terminarem o processo de nacionalizações: a CUF, a Petroquímica, as Pirites Alentejanas, a Companhia das Lezírias ou a Covina ( Ind Vidreira), a Setenave ou os Estaleiros de Viana do Castelo foram nacionalizados no mês de Agosto ou principio de Setembro de 1975.
Foi a maior tragédia económica que atingiu Portugal desde o início da sua história moderna. O Portugal teve uma quebra real do PIB per capita de 6,7% em 1975, depois de já ter caído mais de 1,3% em 1974.
E assim foi
No início de setembro de 1975, o Presidente da República Costa Gomes propõe aos três ramos das forças armada nomear Vasco Gonçalves, então primeiro-ministro, como Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), retirando-lhe desta forma a chefia do governo.
A proposta teve a oposição do Exército e da Força Aérea, já que a Marinha mantinha o seu espírito revolucionário e estava indefetível ao lado de Vasco Gonçalves.
Face à falta de consenso, foi sugerido que a proposta viesse a ser apresentada numa Assembleia do MFA. Para isso seria necessário fazer Assembleias preparatórias para cada um dos ramos das Forças Armadas,
As reuniões preparatórias decorreram em cada ramo das Forças Armadas. A do Exército, foi a mais tumultuosa e com muitos detalhes, já que foram precisas duas Assembleias para se chegar ao resultado final.

Vasco Gonçalves, embora lutando energicamente, de forma estridente até ao fim, sentiu a ausência de apoio e saiu derrotado. Proferiu um discurso longo, cerca de 40 minutos, resignado, e renunciou ao cargo de CEMGFA. Assim, depois de altos e baixos, ganhou a linha próxima dos moderados.
O Grupo dos Nove tinha organizado cuidadosamente os encontros, com o objetivo de bloquear a nomeação de Vasco Gonçalves na chefia das Forças Armadas, aprovar a recomposição da Assembleia que lhes daria maioria e por fim impôs o afastamento de alguns membros comunistas do Conselho da Revolução, contrariando a hegemonia do PCP. Foram também votados nomes para o Conselho da Revolução, sendo excluídos Vasco Gonçalves, Corvacho, Miguel Judas, Costa Martins e outros oficiais próximos dos comunistas, numa proporção de 9 para um. Otelo foi curiosamente um aliado dos moderados no combate ao PCP. Nem sabia ele, que para o Pais recuperar o caminho da Democracia seria o COPCON o próximo alvo a neutralizar.
No dia seguinte, reuniram-se também as assembleias da Armada e da Força Aérea. Enquanto a segunda estava alinhada com o Exército e o Grupo dos Nove, a da Armada manteve-se, como sempre, fiel a Vasco Gonçalves.

Na Assembleia do MFA, já reunindo os três ramos, Os Nove afastaram definitivamente Vasco Gonçalves da liderança das Forças Armadas, recompuseram o Conselho da Revolução e consolidaram a sua influência, marcando a derrota definitiva dos "gonçalvistas" e reduzindo em muito o peso do PCP no Conselho da Revolução.
Os moderados vencem a batalha de Tancos. Recompõem o Conselho da Revolução, que passa a contar com apenas três elementos ligados ao PCP, entre eles Rosa Coutinho, militar de má memória quer para os Portugueses quer para os Angolanos. Os mais ativos oficiais gonçalvistas caem no meio da refrega. Otelo inebriado com a vitória e inoportuno como sempre, reclama:
“Agora é preciso que aprendamos todos, que nos esforcemos por aprender aquilo tudo que não nos quiseram ensinar, ao longo dos anos. É preciso que os tipos do 25 de Abril saibam qual é o caminho.

Como descrito mais tarde pelo historiador José Freire Antunes “Expansivo e inábil, Otelo continua a saber exprimir, como ninguém, toda a fragilidade dos militares atirados para a fogueira da política.”
Em Tancos morre o gonçalvismo, mas não o PCP, mesmo que tenha saído fortemente abalado. O PPD reclamou o fim do Conselho da Revolução, ao mesmo tempo que reclamava ir armar 50 mil homens, mas a luta transferiu-se para outra arena - a rua, e é cada vez mais radical. A norte, ardiam sedes do PCP, atacadas por populares com algum apoio da Igreja, principalmente na zona de Braga. Por cada tentativa de assalto, os militantes comunistas reagiam ao tiro, o que demonstrava que o PCP já estava armado. Dois meses depois o País assistiu ao cerco da Assembleia da República por parte de forças afetas ao PCP, talvez a maior intimidação coletiva exercida sobre um órgão de soberania. Cerca de 90 dias depois assistiria a uma tentativa de golpe de Estado liderada pelo PCP e com a participação inequívoca de Otelo, com intervenção direta, precisamente sobre as tropas que estavam estacionadas na base de Tancos. Mas isso é outra história e iremos lá mais tarde.
(Manuel Castelo Branco)


 


...também no Chile!


 

sábado, 15 de novembro de 2025

a primeira grande derrota do PCP, ou o princípio do fim do PREC.

Há 50 anos, a 5 de Setembro de 1975, acontecia a primeira grande derrota do PCP, o princípio do fim do PREC. Tratou se da Assembleia do MFA ou também conhecida pelo pronunciamento de Tancos.

Este acontecimento, provavelmente menos considerado na altura, é hoje visto como um dos momentos de viragem, com consequências a curto prazo, na demissão de Vasco Gonçalves, na relativização da força do PCP no Conselho da Revolução e mais tarde na própria demissão de Otelo e esvaziamento do COPCON.
Desde o início do verão, o PS e o PSD tinham abandonado o governo. Portugal, desde julho, era governado por uma troika comunista constituída por Costa Gomes (PR), Vasco Gonçalves (PM) e Otelo (COPCON). O grupo dos moderados, também chamado de Grupo dos Nove, tinha publicado um documento que contestava o rumo totalitário que o governo comunista, com o apoio de alguns setores militares, estava a implementar.
Otelo reagia com o documento "Autocrítica revolucionária do COPCON e proposta de trabalho para um programa político", que não apenas criticava o documento dos moderados liderados por Melo Antunes, como também se distanciava do PCP. O Documento do COPCON, claramente influenciado por militares e civis ligados à extrema-esquerda, rejeitava a democracia do tipo ocidental e propunha um modelo de democracia popular e de base. Eles defendiam que as eleições só tinham vindo a confundir o povo, impedindo que a consciência revolucionária fosse alargada às massas populares, já que o voto universal conduziria sempre à perpetuação da burguesia.
Este documento replicava as ideias defendidas pelo movimento terrorista do PRP/BR de Isabel do Carmo e Carlos Antunes, pela UDP, por Mário Tomé e pela LCI, partido de extrema-esquerda que mais tarde daria origem ao PSR (Partido Socialista Revolucionário). Tal como a UDP, este partido seria fundido no atualmente moribundo Bloco de Esquerda. Todos eles eram muito próximos de Otelo e dos seus conselheiros políticos. Otelo tinha vindo de Cuba "com o fogo revolucionário todo no rabo". 
Existiam agora, claramente, três blocos dentro do MFA: os moderados liderados por Melo Antunes, os comunistas alinhados com o PCP e cuja face visível era Vasco Gonçalves, e os radicais liderados por Otelo. Mas, ao que parece, já nem os comunistas acreditavam em Vasco Gonçalves.
A enorme fragilidade política de Vasco Gonçalves era indiscutível, tal como a sua loucura, evidenciada no famoso discurso de Almada. Nele, parece claramente um homem perturbado, desequilibrado e acossado. Os relatos falam de um começo amorfo, defensivo e abatido, e um fim eufórico, onde acaba a distribuir cravos à população. De forma tão descontrolada e doente, oferecia flores a quem as tinha acabado de entregar para as distribuir. É um general perdido que gasta os últimos cartuchos, um discurso desesperado que mais parece um dobre de finados.
O Grupo dos Nove (moderados) consegue, então, obter uma plataforma de entendimento com Otelo para o fim do V Governo Provisório. "…..Percorremos juntos e com muita amizade um curto-longo caminho da nossa História. Agora companheiro, separamo-nos. Julgo estar dentro da realidade correcta deste País ao assim proceder. Como dizia Mao - citando os clássicos - um revolucionário deve estar sempre com as maiorias populares. Só com elas poderemos caminhar em frente na Revolução que é e se quer Nacional…"
É nesta altura que Otelo resolve romper com Vasco Gonçalves, proferindo: "Agora, companheiro, separamo-nos (...) Peço-lhe que descanse, repouse, serene, medite e leia."
Sentindo a total falta de base de apoio, quer no MFA e no CR, Costa Gomes demite Vasco Gonçalves, propõe-o para CEMGFA e nomeia Pinheiro de Azevedo para Primeiro Ministro, o único nome que tinha conseguido algum consenso. 
No final de agosto, o PCP ainda tenta uma aliança com as forças mais radicais, apoiantes de Otelo: o MDP/CDE (o seu partido satélite), a UDP, a LUAR, a LCI, o PRP/BR, o MES e alguns outros. O objetivo era garantir o apoio político a Vasco Gonçalves, anular o crescente protagonismo dos moderados (à volta do Documento dos Nove) e confrontar o PS, que começava a tomar conta da contestação na rua. Esta aliança, que começa por se chamar FUP (Frente de Unidade Popular), não deve ser confundida com a Força de Unidade Popular que surgiria cinco anos mais tarde pela mão de Otelo para ser o braço político das FP25. No entanto, a extrema-esquerda não chega a acordo, o PCP sai da formação e esta passa a ser denominada de FUR (Frente de Unidade Revolucionária).
Esses setores mais radicais, ligados a Otelo Saraiva de Carvalho, mas também ao PCP, criavam os SUV (Soldados Unidos Vencerão), uma organização clandestina dentro do exército. Apresentavam-se em conferências de imprensa com o rosto tapado, tal como anos mais tarde veio a acontecer com a famosa conferência de imprensa das FP25, na Costa da Caparica. No domingo do início de setembro, à noite, no Porto, um oficial e dois soldados, embuçados por razões de segurança, deram a primeira conferência de imprensa dos S.U.V. Eles representavam a proletarização do exército, uma organização de trabalhadores fardados, implantada à escala nacional e capaz de combater a reação, defender os direitos dos soldados e fazer avançar a Revolução.
Desta forma, Otelo mas também o PCP teriam um exército privado e clandestino, como uma estrutura de comando autónoma. Mesmo que tenha nascido no âmbito das forças radicais que apoiavam o COPCON. No entanto, dada a capacidade de infiltração do PCP, e toda a sua técnica de orquestrar e mobilizar , “estando por perto mas sem dar a cara”não é claro que este não dominasse também os SUV. As assustadoras manifestações em Lisboa, Porto e Coimbra são prova disso, com militares fardados junto com vários milhares de “revolucionários”.
Prevendo já um futuro confronto militar, foi delineado dentro do COPCON um plano para distribuir dez mil metralhadoras G3 a grupos de populares próximos dos movimentos de esquerda radical. Em setembro, no auge da confrontação entre radicais e moderados, o capitão Álvaro Fernandes, oficial do COPCON, desviou mil G3 guardadas no depósito de munições de Beirolas e entregou-as a Carlos Antunes e Isabel do Carmo. Quando confrontado, Otelo procurou serenar os ânimos: “Sei pelo menos que as armas se encontram à esquerda e isso é uma satisfação muito grande. Se elas se encontrassem à direita é que era perigoso. Como se encontram à esquerda, para mim estão em boas mãos”. Ainda hoje, não conseguimos saber quantas vidas foram ceifadas por estas armas e quantos bancos assaltados por força da sua intimidação. Isabel do Carmo, entre outros, ainda está viva e pode explicar. Sabemos sim, que estiveram na posse do PRP/BR de Isabel do Carmo e
Carlos Antunes e dai transitaram para as FP25 de Otelo Saraiva de Carvalho.
Mas, mesmo moribundo, o V Governo ainda consegue suspender os acordos de Alvor, permitindo que o MPLA, que dominava Luanda, fizesse face à FNLA, que a cercava, e à UNITA, que dominava grande parte do território. Em Angola, a guerra está praticamente interrompida ou suspensa e discute-se a independência. A FNLA está às portas de Luanda e tem uma clara vantagem militar, beneficiando do apoio dos EUA, China e Zaire. Rosa Coutinho, Governador Geral do Governo Provisório de Angola, tudo faz para consolidar a posição dominante do MPLA, que conta com o suporte da URSS e dos seus satélites, como Cuba e a RDA. Mas faltam-lhe armas e tropas. Na viagem a Angola, Otelo recebe um pedido de Fidel Castro para enviar tropas para Angola em apoio ao MPLA. Otelo, diz que transmitiu a Costa Gomes e este desmente-o. Em qualquer caso, o destino estava traçado e como relatará mais tarde o então embaixador em Havana, José Fernandes Fafe, no dia da independência, 11 de novembro, “já havia 16 mil militares cubanos em Angola”, em território ainda português e em violação de todas as normas de direito internacional. Estava validada a trágica guerra civil de Angola.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

O silêncio cúmplice da comunicação social e o verdadeiro significado do 25 de Novembro de 1975

Ao revisitar o texto de José Ribeiro de Castro, Presidente da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, publicado no Observador, com o título «A comunicação social, as redes sociais e o 25 de Novembro», encontramos uma reflexão tocante e essencial para o presente: a crítica a uma comunicação social que não apenas ignora, como procura encobrir a data emblemática do 25 de Novembro de 1975 — o dia em que a tentativa de sovietização estalinista do PREC foi travada e a democracia liberal em Portugal ganhou novo fôlego.
O papel das redes sociais e o colapso da pluralidade mediática
Como o autor assinala, existe hoje um contraste retórico intenso: a comunicação social (CS) proclama-se porta-voz da “verdade”, enquanto as redes sociais seriam o território da “desinformação”. No entanto, na prática, os factos demonstram o contrário: a CS apresenta zonas negras de silêncio ou de agenda oculta, ao passo que as redes sociais permitem que vozes dissidentes, não cumpliciais, possam comunicar livremente e exercer cidadania.
Na ausência de pluralidade real — e o autor denuncia que, em Portugal, a “pluralidade” é muitas vezes aparente, limitada à opinião, mas não à informação, com todos os órgãos a convergir para os mesmos temas e visões — a CS acaba por funcionar como um oligopólio da agenda: quem foge à narrativa dominante não é publicado, não tem espaço.
Foi precisamente esse fenómeno que testemunhou o ciclo promovido pela Sociedade Histórica, intitulado “50 anos do 25 de Novembro”, que percorreu os “desvios, confrontos, percalços da Revolução e o triunfo da Democracia”.
Apesar de se terem colocado à disposição dos média comunicações prévias — sinopses, convites, notas de imprensa — nenhum órgão de comunicação social compareceu em qualquer das sessões, com exceção da Rádio Renascença na primeira. Este silêncio mediático não é inocente: comunica-se uma mensagem poderosa — a de que o 25 de Novembro e tudo o que lhe antecedeu (o Verão Quente, as prisões políticas, a luta pela Constituição, a tentativa de imposição revolucionária) não merecem tratamento sério ou pluralista. É como se fosse preferível ignorar, encobrir ou suavizar o significado histórico da data.

O 25 de Novembro como reparação democrática
O 25 de Novembro de 1975 não foi um mero “acontecimento de transição”: foi, de facto, o momento em que a democracia liberal portuguesa se afirmava, rejeitando a metamorfose do país numa réplica do bloco soviético. Foi a travagem de um projecto de poder que pretendia suprimir os partidos, as liberdades, a pluralidade e a propriedade privada, em benefício da ditadura proletária. O fim do ciclo do PREC (Processo Revolucionário em Curso) é ainda hoje mal compreendido ou deliberadamente minimizado.
O autor recorda: “as centenas de prisões políticas, o país dividido, a violência contra sedes partidárias, o contar das espingardas, o desastre a anunciar-se.”
Ao reconhecer plenamente o valor do 25 de Novembro como momento de retorno à democracia — e não como traço de continuidade ou banalização do PREC — estamos a honrar a liberdade e a responsabilidade histórica. Mas para isso é necessária uma comunicação social que deixe de se comportar como “guardião oligárquico da agenda” e volte a exercer o seu papel público com coragem.

A abordagem do autor é clara e implacável: se a comunicação social tivesse exercido o seu papel — cobertura plural, respeito pela liberdade de expressão, abertura ao contraditório — a dependência das redes sociais como espaço de liberdade não teria crescido tanto. Mas hoje, em Portugal, para além dos casos de auto-censura ou de hegemonia dos grandes grupos mediáticos, há também uma construção de silêncio — uma escolha editorial de “não dar palco” ao que incomoda ou desagrada à agenda dominante. Quando uma entidade organiza um ciclo público sobre temas nucleares da democracia portuguesa e a esmagadora maioria dos órgãos manda dar “não disponibilizado”, é sinal de que algo muito grave se passa.
Este silêncio ou branquear serve interesses: o interesse de menos-democracia, de menos-pluralidade, de menos contestação, de menos verdade. Serve o interesse de um “consenso” moldado, de uma narrativa que não deixa ver as fracturas que alimentaram e definiram a transição portuguesa.
A comunicação social que se comporta assim — não como quarto poder, mas como quinto poder, poder da omissão — falha ao país. Falha à cidadania. E, acima de tudo, falha à memória democrática.
O texto sustenta que, “se não fossem as redes sociais, estaríamos asfixiados pelo cerco; […] as redes são a nossa liberdade.” E identifica-as como “o nosso 25 de Novembro contemporâneo”.
Claro que não é o ideal: as redes sociais precisam de regulação, de responsabilidade, de temperança. O autor admite-o. Mas elas proporcionam algo inédito: comunicação directa, horizontal, sem filtro oligárquico e sem agenda editorial artificial. E esse “algo” está a mudar a sociedade, porque permite ao cidadão comum exercer voz própria — frente àquilo que a comunicação social tradicional já não garante.
Se queremos uma democracia viva, exige-se que tanto os média como as redes cumpram o seu papel: os média assegurem pluralidade e escrutínio real; as redes permitam voz, reacção e mobilização. E o 25 de Novembro — momento decisivo da história portuguesa — exige que ambos olhem de frente para ele, convoquem os factos, não maquilhem, não fujam, não se calem.

A data de 25 de Novembro de 1975 simboliza o triunfo da liberdade sobre a tentativa de imposição de um regime revolucionário totalitário. A comunicação social que ignora ou suaviza este facto está a negar-se a si própria, à função de mediação democrática, à história e ao presente.
Este artigo de reflexão — inspirado no trabalho de José Ribeiro e Castro no “Observador” — é um alerta: para que haja verdadeira democracia, há que haver verdadeira cobertura mediática. Não basta o espetáculo, o “fecho de edição”, o consenso confortável. É preciso lembrar, debater, confrontar.
E nós, como leitores, cidadãos, pesquisadores, temos o dever de apontar o dedo ao silêncio e à omissão — porque onde há silêncio e omissão, cresce o autoritarismo e perde-se a liberdade.

sábado, 8 de novembro de 2025

A angústia dos jornalistas e o medo de perder o emprego!

Há hoje, nas redacções, uma forma curiosa de sobrevivência profissional: ser “anti-CHEGA”. Não basta fazer jornalismo; é preciso mostrar serviço. 
Dai que cada entrevista, cada artigo, cada noticia seja, para muitos, uma espécie de teste de fidelidade ideológica.
Não é o CHEGA ou o Ventura o entrevistado — é o jornalista quem se submete a exame.
A entrevista ou o artigo transformam-se em ritual de purificação: o repórter ou o comentador tem de demonstrar, perante chefes, colegas e a plateia moral das redes sociais, que *nada tem a ver com Ventura*, que odeia o “populismo”, que se indigna no tom certo e à hora certa. Só assim poderá manter o cargo, o espaço de antena ou o sorriso do director.
É um espectáculo de medo.
O medo é a pior das emoções — e é ele que hoje governa boa parte da comunicação social. O medo de ser confundido com “os maus”. O medo de ser acusado de complacência. O medo de não pertencer ao clube moralmente aprovado.
Quando um jornalista entra num estúdio para entrevistar Ventura, não procura compreender, questionar ou informar. Procura *salvar-se*. O entrevistador não fala para o público; fala para os seus pares. O seu verdadeiro objectivo é ser aceite.
A lógica é de servidão voluntária. Nenhum deles obtém de Ventura o que deveria ser o propósito do jornalismo — esclarecimento, informação, contraste de ideias. Obtém, isso sim, a sensação momentânea de segurança: provar que está “do lado certo da História”.
E é precisamente esse automatismo — essa incapacidade de sair do rebanho — que torna o jornalismo português tão previsível, tão pobre, tão incapaz de surpreender.
Há, é certo, os activistas confessos, os que militam abertamente contra o CHEGA. Mas o mais trágico nem são esses. É o número crescente dos que, não sendo activistas, imitam o tom e os tiques dos fanáticos para não serem excluídos.
A imparcialidade, que deveria ser a essência da profissão, tornou-se defeito. A serenidade passou a suspeita. A dúvida passou a crime.
Só em frente a Ventura, o fanático sente que pode — ou até deve — exibir o seu fanatismo. Como se o dever profissional de informar se dissolvesse no prazer tribal de atacar.
É o retrato da decadência mediática: jornalistas que não informam, comentadores que não analisam, e um país que vai sendo empurrado para a ignorância e o ressentimento — tudo em nome de uma “virtude” que não é mais do que medo mascarado de moral.

No fundo, o jornalismo português está dominado por uma patologia simples: a angústia de ser diferente.
E, por ironia, é isso mesmo que Ventura representa — a diferença que os outros temem reconhecer.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

De Nova Iorque ao Entroncamento — o novo provincianismo global

Os mídia portugueses, sempre atentos à pulsação moral do planeta, sabem quem é Zohran Mamdani. Sabem que é jovem, democrata, muçulmano, imigrante e ocultam que é de extrema esquerda populista — combinação química perfeita para a beatificação instantânea. Sabem, também, que prometeu “fazer a vida negra aos ricos”, o que basta para acender nas redacções uma aura de entusiasmo religioso. Mas não sabem — nem querem saber — quem é o Nelson Cunha, 35 anos, sociólogo, emigrante no RU, natural do Entroncamento. Não lhes interessa. É demasiado perto para ser exótico e demasiado real para ser inspirador.
O jornalismo contemporâneo deixou de ser curiosidade pelo mundo e passou a ser catecismo da tribo. Já não informa: canoniza. A cada novo “Zohran”, o coro mediático ajoelha-se perante o altar da diversidade e da esperança importada, enquanto o país real se dissolve em silêncio.

Lisboa, que há muito trocou a alma pelo reflexo cosmopolita, olha o resto do país com a mesma comiseração com que Nova Iorque olha o Midwest americano: “gente atrasada”, “provincianos”, “populistas”. E assim se constrói o novo provincianismo — o provincianismo global — onde a elite local se julga internacional por repetir slogans alheios.

Há uns anos escrevi no ReVisões que a nova fronteira não é entre esquerda e direita, mas entre os que vivem da realidade e os que vivem da narrativa. Essa fronteira alarga-se. No país real — aquele onde os serviços públicos colapsam, onde as escolas fecham, onde a insegurança cresce — ninguém precisa de “heróis democratas nova-iorquinos”; precisa de médicos, de polícia, de justiça.

Os mesmos que choram por Gaza não sabem onde fica Aljustrel; os que citam AOC e Mamdani nunca ouviram falar de quem gere o Entroncamento. E, contudo, acreditam ser moralmente superiores — porque leram um tweet em inglês e partilharam um vídeo com legendas inspiradoras.
É esta a doença moral do nosso tempo: a substituição da realidade pela emoção mediada. E o jornalismo, que deveria ser o antídoto, tornou-se cúmplice.

Zohran Mamdani, de longe, é símbolo do bem; Nelson Cunha, de perto, é incógnita. Entre um e outro mede-se a falência das democracias maduras — cada vez mais desligadas do território, do povo e da verdade concreta da vida.
O pior talvez ainda esteja para vir. Porque quando uma civilização começa a importar as suas esperanças e a exportar os seus problemas, o colapso já começou — apenas ainda não chegou às redacções.