segunda-feira, 26 de maio de 2008

de Moçambique com amor...


O acordo pronográfico
Este título tem um erro: não é "pronográfico" que se escreve, mas sim pornográfico". Mas isso pouco importa, porque, nesta fase de auto-estima acelerada e de passagens automáticas no ensino, parece haver um acordo para que cada um escreva como lhe apeteça.
Entretanto, só por causa do seu título, este texto é capaz de ter mais leitores do que os leitores habituais desta coluna. Mas eu estou só a seguir a linha de alguns jornais que põem títulos espectaculosos na primeira página e depois o texto da notícia não acrescenta nada ao que está no título. Mas para que esses eventuais leitores adicionais não abandonem já a leitura deste texto, adianto, desde já, que, na mesma onda desse tipo de jornalismo, sempre aparecem, lá para o fim do texto, uma ou duas linhas relacionadas com o título.
Há uns dias atrás, um canal de televisão apresentou uma simulação de debate sobre o famigerado acordo ortográfico de inspiração brasileira. Chamo-lhe simulação de debate, porque os três convidados tinham opinião unâmime.
Ficámos assim a conhecer um novo conceito de "debate aberto", que consiste em juntar três pessoas para defenderem todas a mesma posição e os mesmos interesses, no melhor estilo frélio.
Um dos participantes nesse debate unânime é director do Centro de Estudos Brasileiros, pelo que nem precisava de abrir a boca, para que se soubesse de antemão qual seria a sua posição, visto que o tal acordo ortográfico não é mais do que um negócio brasileiro. Aliás, esse director deixou isso bem claro, quando afirmou que isto é uma questão do mercado da língua. Na verdade, isto consiste precisamente em substituir aquilo que é uma língua cultural por uma língua mercantil ou comercial. E assim sendo, os argumentos do director desnecessitam de mais comentários.
Outro participante no debate unânime foi um escritor chamado "Bakakoss", pelo menos segundo a ortografia apresentada inicialmente na legenda da pantalha do televisor. Acontece que o venerando "Bakakoss", sendo um funcionário governamental com funções de direcção, não poderia tomar outra posição que não fosse a de defender o seu pão. Isso de ter posições próprias foram apenas traquinices juvenis duma outra era, ora ajuizadamente sepultadas.
E não é de admirar que quem se dedica a congeminar fábulas, venha apresentar uma fabulosa solução: muda-se umas letras na ortografia e imediatamente os livros chegarão em massa a todos os distritos e localidades. Por outras palavras: se hoje não há lá livros, é por causa da... ortografia! Esta solução é tão fabulosa que até dá para pensar que com a nova ortografia já nem será necessária a alfabetização.
Finalmente, uma terceira participante no fictício debate apresentou um argumento bem mais delirante: o acordo é importante por causa dos crentes duma "igreja" brasileira, por causa das novelas brasileiras e por causa da maneira como "os nossos filhos, os nossos jovens [ai que ternura!] escrevem nos telemóveis".
Esta participante teve o mérito de nos colocar "in the year twenty five twenty five" [no ano dois mil e quinhentos e vinte e cinco], conforme o nome duma canção antiga. É que ela explicou que: "Todos os moçambicanos ou quase todos ou pelo menos a maioria assiste à novela".
Parece que a Electricidade de Moçambique se esqueceu de nos informar que a energia eléctrica já chega a todas as localidades e aldeias, e o Governo se esqueceu de propagar que o poder de compra dos moçambicanos já é suficiente para que todos tenham televisor. Também não é de admirar que quem anda com a mente embriagada pelas novelas brasileiras, e vive com a cabeça no Brasil, confunda Moçambique com a cidade de Maputo.
Mas o mais destacado em tudo isto é que – provavelmente graças à sua política de passagens automáticas no ensino – o Governo terá conseguido levar a cabo uma autêntica Revolução Cultural, através da qual "todos os moçambicanos ou quase todos ou pelo menos a maioria" passaram a ser fanáticos de telenovelas! Desde que ouvi aquela coisa sobre as telenovelas, ainda não consegui dormir, pois ando embrenhado em pesquisas, para tentar descobrir qual é a ortografia das telenovelas brasileiras, visto que elas são faladas e não escritas.
E ainda não me apercebi de que elas tenham legendas...
Argumentam também que as alterações impostas pelo "acordo brasileiro" são mínimas, e chutam umas percentagens. Então, se as alterações são tão insignificantes, porque é que o acordo é tão importante e se assanham tanto em sua defesa? De resto, lá pelo meio do programa, o Brasil chegou a ser designado como "a grande vanguarda"! Hoye!
Primeiro andam a palrar que uma língua é um organismo vivo, que se transforma conforme a cultura de cada país, e depois vêm defender a uniformização!
É por tudo isto que o pleno acordo demonstrado entre aqueles três paineleiros (membros do painel), sendo baseado em argumentos forjados com o intuito de fornicarem a nossa inteligência, não pode deixar de ser considerado um acordo pornográfico. E, neste contexto, parece-me que a melhor maneira de terminar este texto é com a ortografia do secretário-geral da chamada associação dos escritores moçambicanos, esse kastiço representante duma folklórika klique que lá o kolokou, que num célebre texto da sua autoria – onde ele confessa que a sua competência de leitura é insuficiente para ler José Saramago –, termina a sua prosa da seguinte maneira: "Fuck off".
Eu bem vos prometi que no fim haveria pornografia...

in jornal SAVANA Maputo 230508 Lide Lidima, Afonso dos Santos