quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A Minha Guerra...


Furriel Armando Lopes

Nunca mais me esqueço da viagem para a Guiné, a bordo do paquete Uíge. Embarcámos em 3 de Abril de 1973, na Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa. Marcou-me a vida dos cabos e soldados durante os quatro dias de mar até Bissau: viajaram no porão mal ventilado, dormiam em camas encavalitadas umas nas outras e muitos eram obrigados a comer de pé, por falta de espaço.Chegámos ao porto de Bissau no dia 7 de Abril. Lembro-me das águas barrentas do Rio Geba. Após as formalidades do costume, como o desfile das tropas perante o governador e comandante-chefe, general Spínola, lá seguimos para Bula – destino do meu esquadrão de reconhecimento constituído por carros de combate blindados Panhard.

O Sul da Guiné era então a mais dura zona de guerra. O aquartelamento era constantemente flagelado pelos foguetões que os guerrilheiros disparavam a partir da Ilha de Como: nós corríamos para as valas de abrigo enquanto os camaradas artilheiros respondiam com fogo de obuses.Numa operação, tocou-nos dar protecção a uma coluna de reabastecimento para Guidage – um aquartelamento da nossa tropa, praticamente em cima da fronteira com a Guiné-Conacri, país onde o PAIGC tinha instaladas as bases de apoio. A zona de Guidage escondia as principais rotas dos guerrilheiros para o interior da nossa província. Dias antes da operação, estalara um violento combate entre a nossa tropa e a guerrilha. Quando seguimos para Guidage, colados à coluna de reabastecimento, encontrámos pelo caminho as marcas dessa batalha: vimos as enormes crateras na picada e os destroços calcinados e retorcidos de camiões Berliet de transporte de pessoal. Soubemos, depois, que a tropa portuguesa tinha conseguido aguentar o ataque mas deixou para trás algumas viaturas. A Força Aérea bombardeou as Berliet abandonadas para impedir que caíssem nas mãos dos guerrilheiros. Chegámos sem problemas a Guidage, onde passámos a noite, e no dia seguinte segui com o meu esquadrão a caminho de Mansabá. Em Farim, atravessámos o rio de jangada. Pouco tempo depois, sofremos uma forte emboscada. A viatura com soldados atiradores que seguia atrás da minha Panhard foi fustigada por granadas-foguetes e rajadas. Dois homens morreram imediatamente e vários ficaram gravemente feridos. Nós, na Panhard, ripostámos ao fogo dos guerrilheiros – e recordo com gratidão a perícia dos tripulantes do meu carro de combate, o Vicente e o Sousa. Dias depois, sofremos nova emboscada no mesmo local: perdi um amigo, o Tojó, que caiu morto em combate.Um dos ataques que mais me impressionou ocorreu em Setembro de 1973, na zona de Có, perto de Bula. Os guerrilheiros emboscaram a nossa coluna. Viaturas civis que transportavam guineenses foram apanhadas pelo tiroteio. Vi a matança. O fogo dos guerrilheiros não poupava ninguém. Morreram mulheres, crianças e velhos. Ainda hoje, recordo o sangue a escorrer das viaturas. No meio deste horror, apercebi-me de que um alferes amigo estava gravemente ferido. Uma granada-foguete arrancara-lhe um pé. Um guineense fez-lhe um garrote para travar a hemorragia. Quando me aproximei, o alferes olhou-me com coragem. Não lhe ouvi um lamento. Só me pediu um cigarro. Ele ia de férias daí a oito dias – para se casar, segundo me disseram.Uma noite, estava eu de prontidão no quartel de Bula, houve necessidade de mandar uma ambulância para evacuar uma mulher grávida em Binar. A ambulância não podia ir sozinha: teria de sair sob protecção de, pelo menos, três blindados. Fui acordar o furriel Ferreira e o aspirante Daniel, que imediatamente aprontaram as suas Panhard e respectivas tripulações. Lá saímos, um pouco depois das onze da noite.Chegámos à guarnição de Binar. Os maqueiros e o enfermeiro colocaram a mulher na ambulância e arrancámos de regresso. Uma Panhard à frente, a ambulância a seguir e mais duas Panhard a fechar a coluna. A minha era a última. De noite, circulávamos apenas com os mínimos acesos para evitar que os guerrilheiros nos localizassem. Deu-se um acidente. A Panhard que seguia à minha frente, comandada pelo furriel Ferreira, capotou – e a minha chocou contra ela. O primeiro blindado e a ambulância rodavam mais à frente, não se aperceberam do acidente e continuaram o caminho. Dois Panhard ficaram para trás. Os três camaradas que seguiam no Panhard à minha frente, e que capotou, ficaram feridos – e, entre eles, o que estava pior era o furriel Ferreira. Era noite cerrada. Não tínhamos rádio. Eu e um tripulante do meu blindado pegámos em granadas de mão e voltámos a pé para o destacamento de Binar. Caminhámos mais de uma hora pela picada. Regressámos com reforços o mais depressa possível ao local do acidente – e, para grande tristeza minha, o Ferreira já estava morto: não resistiu aos ferimentos que resultaram do capotamento da Panhard. O Ferreira tinha sido pai há oito dias.Noutra ocasião, fomos com os blindados dar apoio a uma operação que uma companhia de Comandos levou a cabo na zona de Bula. Entre os Comandos estava um amigo meu – o Ribeirinho. Ao final da tarde, os Comandos deram início à operação. Entraram na mata divididos em grupos de combate. Ao longo da noite, sucederam-se os períodos de fogo – que nós acompanhávamos da picada e prontos para intervir em caso de necessidade. Temia, face ao volume das explosões e das rajadas, que os Comandos sofressem mortos ou feridos. Mas, felizmente, regressaram todos bem. Um deles, por sinal o meu amigo Ribeirinho, que entrara na mata com o camuflado limpo, vinha todo sujo. Apareceu-me com um sorriso rasgado. Trazia nos braços duas crianças pequenas. Tinham sido abandonadas e ele resgatou-as. Os Comandos cuidaram das crianças. Não sei se vieram para a Metrópole depois da independência ou se ficaram na Guiné.Uma madrugada, acordei com tiros disparados dentro da caserna. Um camarada do esquadrão acordou com pesadelos, deu um salto da cama, pegou na G-3 e desatou aos tiros. Felizmente que disparou para o ar. Foi evacuado e nunca mais fez operações no mato.Quando se deu o 25 de Abril, ainda eu estava na zona operacional de Bula. Às tantas, recebi ordem de marcha para Bissau – a fim de aguardar transporte para Lisboa. A guerra para mim chegava ao fim. Mas ainda havia de passar por um momento de profunda tristeza. Soube de um episódio que me deixou transtornado. Um alferes sapador, que eu conhecia, tinha por missão levantar um campo de minas devidamente sinalizado. As chuvas deslocaram uma mina e o alferes desesperava para a encontrar. Quando finalmente a achou, tinha os nervos à flor da pele. Fez o que não passa pela cabeça de ninguém no seu juízo perfeito. Deu um pontapé na mina. Ficou sem um pé.


O furriel miliciano Armando Viegas Lopes passou 17 meses na Guiné. A revolução de 25 de Abril abreviou-lhe a comissão. Regressou são e salvo a Lisboa, a bordo de um avião, em 2 de Setembro de 1974. “Tive muita sorte na Guiné” - diz Armando Lopes. Chegado da guerra, fez férias. Em 1975 fez parte de uma cooperativa de construção e de reparação naval – que abandonou cinco anos depois, em 1980. Trabalhou numa empresa de construção civil, de onde saiu em 1983 para se dedicar a um restaurante, na zona de São Sebastião da Pedreira, em Lisboa. Armado Lopes casou-se duas vezes. Tem três filhos. CM 2008-02-24