sexta-feira, 13 de junho de 2025

Marcelo, Ventura, o Imã e a Memória que Incomoda

O Presidente da República deslocou-se a Lagos para mais uma encenação pública de virtudes abstractas. Disse, com o ar de quem recita verdades eternas, que “ninguém é mais português do que o outro”. Disse-o, sabendo que não é verdade. E nós sabemos que ele sabe que não é verdade. Mas a frase, embora oca, serve bem à política da emoção fácil e da fuga ao essencial.
Acontece que há portugueses que deram a vida por Portugal, e outros que apenas se servem dele. Há portugueses que o são por identidade, por enraizamento, por história — e há quem apenas o seja por conveniência, por utilidade, por papel passado. Não, Senhor Presidente: nem todos os portugueses são iguais. A Pátria não se mede em centímetros de cartão de cidadão.
Em Belém, na mesma semana, outro episódio revelou como a ignorância histórica continua a comandar a política e a reacção pública. Um indivíduo, ignorante ou oportunista, insurgiu-se contra a presença do Imã David Munir na homenagem aos antigos combatentes do Ultramar. Talvez tenha visto ali um sinal de rendição ao politicamente correcto. Enganou-se!

As comunidades muçulmanas da Guiné e de Moçambique deram provas de lealdade a Portugal durante as décadas de 60 e 70. Muitos dos combatentes portugueses eram africanos e muçulmanos — lutaram e tombaram por esta Nação. A presença do Imã não é um acto de submissão ao multiculturalismo moderno; é uma evocação justa da História real, aquela que não cabe nos manuais da esquerda urbana.
E nem só a esquerda escorrega na ignorância histórica. Também André Ventura, num reel recentemente publicado incorre num erro semelhante. Ao comentar a homenagem, insinua que a presença do Imã representa uma concessão ao globalismo e à descaracterização nacional. Esquece — ou ignora — que muitos dos soldados que deram a vida por Portugal na Guerra do Ultramar eram precisamente africanos muçulmanos. Esquece que Portugal foi sempre mais vasto do que a Europa, e que a lusitanidade se construiu com base numa ideia de comunidade política e afectiva, não num critério étnico ou religioso. https://www.facebook.com/reel/1021033176812474
Ora, em 1974, os muçulmanos da Guiné ou de Moçambique eram tão portugueses como qualquer habitante de Braga, de Évora ou de Ponta Delgada. E quem lhes tirou esse direito não foi nenhum nacionalismo de direita. Foi a esquerda revolucionária, com Vasco Gonçalves à cabeça, que em 1975 impôs o critério racial e de sangue como base da nacionalidade. Pela primeira vez, deixou de bastar o vínculo cultural, afectivo e político a Portugal. Passou a ser necessário “provar” o sangue europeu — como se a Pátria se reduzisse a uma genealogia.
Ironicamente, a mesma esquerda que excluiu os africanos que queriam continuar a ser portugueses, é hoje aquela que exige que qualquer recém-chegado, mal atravessa a fronteira, seja imediatamente considerado um “novo português”. A esquerda que, em 1975, dizia que os pretos não podiam querer ser portugueses, porque isso era ilusão colonialista, é a mesma que hoje diz que qualquer cidadão do mundo é português desde que o diga.
O problema da imigração em Portugal não tem que ver com cor, fé ou origem. Tem que ver com volume, ritmo e vontade de integração. Ser português não é ter um cartão. É pertencer a uma comunidade histórica, cultural e afectiva. E, sim, quem se revê nos valores, nos símbolos, na memória colectiva desta Pátria — independentemente da pele ou da religião — é mais português do que qualquer “português” que despreze tudo isso.
Por isso, Marcelo Rebelo de Sousa erra. E sabe que erra. E sabe que nós sabemos que ele sabe que erra. A sua frase — “ninguém é mais português do que o outro” — é uma dessas mentiras sentimentais que os políticos gostam de repetir quando já desistiram de defender a verdade. Mas Ventura, quando se esquece da história real dos portugueses do Ultramar, aproxima-se perigosamente da mesma ignorância moral da esquerda que diz combater.