Vivemos tempos de viragem política. O resultado das eleições de 18 de Maio trouxe à tona uma realidade que muitos já intuíram, mas poucos ousavam afirmar: o regime saído do 25 de Abril, tal como foi conduzido nas últimas décadas, faliu na sua promessa fundadora. E o que vemos agora, em reacção ao sobressalto democrático provocado pelo voto popular, lembra demasiado as velhas resistências do chamado Verão Quente de 1975.
Só os mais velhos — aqueles que viveram e sentiram os dias tensos do PREC, os comunicados incendiários, as capas alarmistas e os apelos moralistas da comunicação social da época — conseguem hoje reconhecer os tiques autoritários e o tom paternalista com que certos sectores das elites políticas e mediáticas têm reagido. A indignação contra o voto livre é disfarçada de preocupação com a democracia, exactamente como o foi naquela altura: quando o povo se desvia do guião pré-escrito pelos “donos da razão”, surge o pânico entre os seus escribas.
É evidente o incómodo que lhes causam hoje as redes sociais. Estas plataformas, com todos os seus defeitos, quebraram o monopólio da opinião e da informação. Já não é possível calar vozes incómodas ou moldar a realidade a partir de redacções alinhadas com a narrativa dominante. A pluralidade de fontes e a velocidade da circulação da informação roubaram à imprensa tradicional o papel de intermediário exclusivo entre o poder e o povo. E isso dói-lhes. Muito.
Compreende-se, pois, a amargura dos militantes da esquerda institucionalizada. Não é o Chega que os assusta verdadeiramente. Nem o espantalho do fascismo, que tanto invocam e de forma cada vez mais inócua. O que lhes dói, no mais íntimo, é a evidência de um falhanço histórico. Após 51 anos de promessas, programas, planos e propaganda, os mais desfavorecidos — precisamente aqueles a quem mais se prometeu — continuam esquecidos, explorados e votados à periferia da cidadania. São esses que agora votam “mal”. São esses que, cansados de esperar por um futuro que nunca veio, decidiram dar o seu voto a quem, pelo menos, reconhece as suas dores.
Não se trata de um voto ideológico, mas existencial. Um voto de afirmação. E, talvez por isso, seja tão doloroso para quem ainda vive do mito de que a esquerda detém o monopólio da virtude.
O regime, como o conhecemos, esgotou-se. E a reacção crispada de certas elites só o confirma: não estão preparadas para perder o controlo da narrativa. Mas o povo já começou a escrever a sua própria.