quarta-feira, 29 de maio de 2019

BATALHA DE TRANCOSO

29 DE MAIO DE 1385
A vez do “roncador”
Martim Vasques da Cunha, nobre que contestou a eleição do Mestre de Avis a rei, e que por isso recebeu um sério aviso de Nuno Álvares Pereira, também malhou nos castelhanos
É hoje consensual que a eleição do Mestre de Avis a rei, a 6 de abril de 1385, nas cortes de Coimbra, como D. João I, se deve à argúcia jurídica de João das Regras e à demonstração de força de Nuno Álvares Pereira (dali saiu, aos 24 anos, como Condestável e Mordomo--Mor do Reino), que inundou a cidade com 300 escudeiros armados até aos dentes. Ainda assim, Martim Vasques da Cunha, porta-voz de um grupo de grandes senhores da Beira, ousou contestar a elegibilidade régia do Mestre. Estes fidalgos, conservadores e avessos a “revolucionários”, eram partidários da candidatura do infante D. João de Castro, filho de D. Pedro I e D. Inês de Castro. Não era, porém, uma solução lá muito viável: D. João de Castro tinha caído numa armadilha que lhe fora montada pela rainha D. Leonor Teles, que o instigou a matar a sua mulher, Maria Teles (irmã da própria Leonor), por supostas infidelidades, ao mesmo tempo que lhe dava esperanças de poder vir a casar-se com Beatriz, filha herdeira do meio-irmão e rei D. Fernando (sua sobrinha, portanto), numa espécie de “via verde” de acesso ao trono. O infante exilou-se depois em Castela, para fugir às consequências do crime, e, mal D. Fernando ficou moribundo, o rei D. Juan I prendeu-o, para não lhe fazer sombra na sucessão pela qual também lutava. Nada que perturbasse os senhores da Beira, que defenderam o mais que puderam, nas cortes de Coimbra, a candidatura de D. João de Castro. A ponto de, furioso, Nuno Álvares Pereira se virar para o Mestre e dizer-lhe, em voz alta: “Eu já vou calar aqui o roncador do Martim Vasques da Cunha.” Foi o suficiente para o fidalgo abandonar a reunião.
No entanto, o grupo partidário de D. João de Castro seria valente no mês seguinte. Após lamber as feridas da derrota de 1384, D. Juan I voltou à carga, sempre com o objetivo de tomar Lisboa. A frota marítima cercaria outra vez a capital, o rei sitiava Elvas e um contingente de capitães, percorrendo a Estrada da Beira, saquearia tudo o que pudesse até Viseu. O monarca castelhano saiu-se mal, uma vez mais. Embora a frota tenha bloqueado Lisboa pelo mar, Elvas não caiu nas mãos de D. Juan I – que se retirou para Ciudad Rodrigo. Só o saque da Beira pareceu estar a correr bem: ao longo de 15 dias, umas centenas de capitães castelhanos (apoiados por ginetes, besteiros e peões) fizeram cerca de 150 quilómetros em território português, e em Viseu, que incendiaram, realizaram um roubo monumental.
Quando regressavam a Castela, recheados de bens saqueados e prisioneiros, tiveram uma surpresa junto a Trancoso. Um exército português em autogestão, formado por 340 homens de armas bem equipados e por cerca de mil peões e besteiros, comandados pelos senhores da Beira (entre os quais o “roncador” Martim Vasques da Cunha), intercetou-os na estrada que os levava a Pinhel, perto da fronteira. Porém, os castelhanos não quiseram combater. Desviaram-se em direção à população de Freches, para depois retomarem a mesma estrada. O exército português mudou também de posição, e fixou-se junto à Ermida de S. Marcos. E regressava a “receita” inglesa: os castelhanos eram obrigados a combater num terreno que o inimigo escolheu, com uma frente de 200 metros, que dava para poucos efetivos, e o flanco esquerdo protegido pela ermida. Havia ainda um declive frontal acentuado em relação à posição portuguesa e também num dos lados, que dificultava o envolvimento por parte do inimigo.
Foi um combate todo apeado (os castelhanos lembraram-se da “lição” de Atoleiros), que durou várias horas, e em que os fidalgos sobreviveram e os bem preparados capitães de D. Juan I acabaram dizimados. Para lá do “receituário” inglês, João Gouveia Monteiro considera admissível que uma parte dos prisioneiros que os castelhanos traziam tenha conseguido libertar-se, podendo, nesse caso, ter atacado o inimigo por trás, como por vezes sucedia. Documentada pelos historiadores está a decapitação do Estado-Maior de D. Juan I: muitos dos seus melhores quadros militares morreram no cerco de Lisboa, ou em Atoleiros, ou na batalha de Trancoso.