quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Habituem-se!

Confesso que hesitei em escrever este artigo. Primeiro, porque compreensivelmente receava a dura prova de ler nada menos do que as 11 páginas da entrevista de António Costa à Visão. Um confronto assim com a temível máquina de palavras que é António Costa ameaçava deixar-me derreado. Em segundo lugar, porque já tanta gente escreveu ou falou da entrevista em questão que a probabilidade de notar algo que tivesse passado previamente despercebido era remota.
E é verdade que os traços mais salientes da entrevista foram quase todos notados. Por exemplo, o seu desprezo manifesto pela oposição, expresso numa linguagem grosseira e primitiva. Assim, a IL é constituída por “queques” que “guincham”, o que os torna “ridículos”, sem conseguirem alçar-se ao “vozeirão popular que o Ventura consegue fazer”. O PSD, pelo seu lado, em estado de desespero, “faz números”. “Guinchos” e “números” são, naturalmente, amplificados pela “bolha mediática”, aliada à “central de produção de soundbites da direita”. Toda esta gente ignora por inteiro os verdadeiros problemas dos portugueses, que intimamente a desprezam e amam Costa. O único problema do Governo que não se reduz a “casos e casinhos” puramente imaginários foi o de Pedro Nuno Santos com o aeroporto, e esse foi resolvido em 24 horas.

Não é que Costa negue a necessidade de uma verdadeira oposição. Nobremente, reconhece que “não há nenhum bom governo que não precise de uma boa oposição”, acrescentando com uma generosidade única: “É muito útil para a democracia”. Grande verdade, grande sabedoria, grande lição. Infelizmente, a oposição, que tanto o deveria saber, ajudada pela “bolha mediática”, ignora-o abissalmente. E com essa atitude, Costa não tem paciência. Mas mesmo nenhuma. Enumera as suas profundas preocupações de estadista e desabafa: “se agora andasse a distrair-me com essas coisas que entretêm os comentadores, meu Deus!”. Tal a sua irritação que menciona o incómodo que a insistência nos “casos e casinhos” causa junto dos seus assessores de imprensa, “que podiam concentrar-se noutros trabalhos e são ocupados a distrair-se com esses assuntos”. Não está bem, de facto. Os assessores de imprensa a preocuparem-se com as histórias de Miguel Alves! Não é justo!

Mas o que o irrita verdadeiramente e provoca a sua indomável cólera é outra coisa: são as “mentiras vis” – “velhacarias”, diria o seu mestre Sócrates – de Carlos Costa no livro de Luís Rosa. Isso põe-no fora de si. E lembra o exemplo do pai e da mãe. Face à turpitude de “criaturas” que revelam em público conversas, “mantenho-me nas regras da educação que os meus pais me deram” – que comportam, sem dúvida, os imperativos de não “guinchar” nem “fazer números”. A família, de resto, ocupa uma elevada presença no pensamento de António Costa. Respondendo a uma pergunta sobre os novos dois irmãos no Governo, que aparentemente violariam a regra imposta desde o tempo do célebre caso das famílias no conselho de ministros, Costa responde (vale a pena citar a resposta por inteiro): “Disse tudo: são duas personalidades com competências reconhecidas. Tenho uma grande vantagem: vejo, pela minha própria família, que não é pelo facto de eu ser o primeiro-ministro e de o meu irmão ser quem é [Ricardo Costa, director de informação da SIC] que deixo de cumprir as minhas funções, e ele também”. Os entrevistadores, Mafalda Anjos e Filipe Luís, aparentemente não levaram a mal que Costa não lhes respondesse à questão que tinham colocado – a colisão com um princípio por ele próprio estabelecido –, já que não insistiram na pergunta, talvez embevecidos com tão notáveis exemplos familiares.

Tudo isto tem a sua importância, embora uma importância relativa. O que, pelo contrário, é verdadeiramente preocupante num primeiro-ministro é outra coisa: a sua manifesta ignorância do que significa “estrutural”. Em três colunas da entrevista, Costa usa a palavra pelo menos 11 vezes. O que significa, sem dúvida, que a aprecia – ou, pelo menos, que ela lhe lembra alguma coisa. Infelizmente, lembra-lhe qualquer coisa de errado, atendendo ao modo como a utiliza.

Senão, vejamos. António Costa começa por distinguir as reformas estruturais que a direita quer das que ele defende. As da direita, presume-se, são vãs e malignas (e, no que têm de bom, como as que permitiriam a melhoria da competitividade da nossa economia, ele fá-las melhor). As dele, pelo contrário, são magníficas e prosseguem, indomáveis, à velocidade da luz.

São elas: “ter reduzido para menos de metade o abandono escolar precoce no nosso País”, “a mudança mais estrutural do País, porque muda tudo”; a mudança estrutural – aliás, uma “revolução estrutural” – obtida, no seguimento “da paixão do engenheiro Guterres pela Educação” e “do programa tecnológico do engenheiro Sócrates”, nos níveis de qualificação do País; a mudança estrutural na “forma como temos finanças públicas sustentáveis e ao mesmo tempo conseguimos aumentar o investimento público”; a “mudança estrutural em curso” na redução da pobreza; o encerramento das centrais de carvão; o aumento de dotação para a Saúde; e a aprovação do estatuto do SNS. “Se isto não são mudanças estruturais, o que são mudanças estruturais?”, pergunta-se.

 

Ora, se entendermos por “estrutural” aquilo que normalmente se entende, isto é, no mínimo, problemático. “Estrutura” significa uma rede interconectada que serve de base a uma série de operações que a partir delas podem ser operadas. É, portanto, algo de que possui uma forte estabilidade que contrasta com a variabilidade relativa daquilo que a partir dela pode ser produzido através de um número indefinido de combinações. É uma versão simplificadora das coisas, é verdade, mas é aqui suficiente. A natureza, as sociedades, as línguas e um sem-número de outras realidades possuem estruturas: definem-se a partir delas. As mutações estruturais, possíveis em algumas dessas realidades – e as sociedades pertencem a esta categoria –, são transformações nessa base, a partir de reformas ou de revoluções, que modificam, em graus variáveis, as combinações possíveis na superfície da estrutura. Não são modificações na superfície: são modificações na base que determinam, mais ou menos univocamente, modificações na superfície.

Como é bom de ver, as “reformas estruturais”, ou “revoluções estruturais”, mencionadas por Costa não são, com a possível excepção do encerramento das centrais de carvão, nada de estrutural. São rearranjos, mais ou menos felizes, mais ou menos credíveis, da superfície. Não quero estar aqui a discutir a felicidade ou infelicidade desses arranjos, a sua credibilidade ou inverosimilhança. Apenas quero dizer que nada têm de estrutural.

Seria pretensioso da minha parte estar aqui a discutir a pertinência do vocabulário de Costa neste ponto particular, não fosse ele revelar a natureza – estrutural, de facto, essa – do modo de relação de António Costa com a linguagem. Como boa e bem rolada máquina de palavras que é, ele é useiro e vezeiro em utilizar as palavras sem relação directa (às vezes, nem sequer indirecta) com o seu significado. É a versão portuguesa do Humpty-Dumpty da Alice: as palavras significam o que eu quero. E não há nada a fazer: ele é assim. Para que deixasse de o ser, seria preciso uma verdadeira revolução estrutural. Suponho que com meras reformas ele não ia lá.