A aversão extrema a mudanças de fundo e reformas é uma marca identitária portuguesa. Por isso, não seria num dos períodos de maior incerteza global em várias décadas que elas iriam aparecer. Na linha do que estes governos nos habituaram, trata-se de gerir o dia a dia, distribuir o mal e o bem pelas aldeias e olhar para as duas últimas linhas das tabelas das contas públicas: o défice e a dívida, porque a tempestade pode estar ao virar da esquina e a memória do descalabro de 2010 e 2011 está bem viva.
O Orçamento do Estado para 2023 dá um pouquinho às famílias — uns pozinhos do IRS e uma atualização dos apoios sociais (com exceção do truque das pensões) em linha com a inflação deste ano. Dá também um pouquinho às empresas — umas mudanças no IRC para tentar impulsionar o aumento de salários. Por fim, fica com uma boa fatia para si — o saldo primário (diferença entre a receita e a despesa antes de juros) é positivo e melhora quase 3500 milhões de euros.
Feitas as contas, as famílias não vão ter reposto o poder de compra perdido ao longo de 2022 e vão, provavelmente, continuar a perder salários reais ao longo de 2023 — os funcionários públicos serão os mais penalizados. Todos chegarão ao final do próximo ano mais pobres do que estavam no início de 2022, antes da inflação e dos juros começarem a ir por aí acima. E não será por impacto das medidas do orçamento que as empresas vão aumentar a sua competitividade.
É um orçamento de controlo de danos políticos, económicos e sociais com alguns passes de magia pelo meio. Exemplo? A redução da retenção na fonte de IRS para contribuintes que tenham crédito à habitação não é uma descida do imposto. O que as famílias descontarem a menos ao longo de 2023 vão pagar em 2024 quando fizerem o acerto de contas anual após a entrega da declaração.
Mas o passe de mágica mais eficaz chama-se inflação. Pode parecer um paradoxo, mas enquanto é a origem de muitos apertos para as famílias, a inflação é também um consolidador orçamental como poucos. À conta dela, as receitas fiscais continuam a subir a bom ritmo. E sem ela, o milagre da dívida pública com que Fernando Medina fez questão de arrancar a conferência de imprensa não existiria. Não fosse um crescimento nominal do PIB insuflado com uma inflação próxima dos dois dígitos e a dívida pública não faria o favor de cair acentuadamente para os 115% do PIB em 2022 e para os 110% do PIB no próximo ano.
A ilusão monetária provoca danos sociais mas, como se vê, continua a ser uma boa amiga de governos que precisam de praticar políticas restritivas sem o aborrecimento de terem que o dizer olhos nos olhos aos cidadãos. O Orçamento do Estado para 2023 continua a beneficiar dessa ilusão. (Paulo Ferreira no Observador)