De repente no meio da rua lá está
aquela tranquitana metalico-luminosa a que chamamos árvore de Natal. E foi
perante aquele cone iluminado, artefacto que nos sobrou devidamente expurgado
de tudo o que possa identificar aquilo que somos, o que sentimos, o donde
vimos, que me dei conta de como em nome da segurança, da tolerância, da saúde e
de sei lá mais o quê estamos a criar um mundo faz de conta. Um mundo em que:
A Bela Adormecida ficou sem beijo
porque o príncipe foi acusado de abuso.
A Capuchinho Vermelho já não é salva
pelo caçador que também deixou de caçar e o lobo ficou vegetariano.
A culpa é alegada.
A fruta não tem bicho.
A humanidade ficou sem sexos e dizem
que está perder o interesse pelo sexo.
A má educação tornou-se bullying.
A manteiga ficou magra.
A mentira tornou-se inverdade.
A verdade inconveniente.
As crianças não têm tempo para não
fazer nada.
As feiras não têm graça.
As gaiolas ficaram sem grilos.
As natas perderam a gordura.
Chama-se a televisão em vez da
polícia.
O artesanato é certificado.
O atirei o pau ao gato ficou sem
letra.
O bolo rei já não tem brinde.
O café perdeu a cafeína.
O circo ficou sem leões, depois sem
elefantes e agora sem animais.
O iogurte ficou sem lactose.
O leite vem da soja e não das vacas.
O namoro ficou sem palavras por causa
do assédio.
O pão não tem glúten.
Os bolos não têm farinha.
Os brinquedos ficaram sem graça mas
estão cheios de didatismo.
Os doces ficaram sem açúcar.
Os filhos não têm pai nem mãe mas sim
progenitores.
Os maridos e as mulheres passaram a
cônjuges.
Os parques infantis ficaram sem
escorregas de verdade. E alguns sem baloiços.
Os pátios das escolas já não têm
árvores nem terra.
Brincar é uma actividade devidamente
monitorizada.
Os filmes não contam histórias, ilustram
teses.
As universidades tornaram-se uma liga
de costumes.
As coisas deixaram de ser o que são
para se tornarem num dado a avaliar consoante o seu enquadramento numa
perspectiva condicionada por diversas valências.
Tudo é relativo.
O Natal ficou sem Menino Jesus e
tornou-se a festa do cone iluminado.
( in “A festa do
cone iluminado” por Helena Matos )