Há momentos parlamentares que, pela sua simplicidade, expõem décadas de silêncio organizado. O gesto de André Ventura ao afastar, com a mão, os cravos deixados sobre as rosas brancas por uma deputada da extrema-esquerda [1], é um desses momentos. Pequeno, directo, quase instintivo — mas politicamente devastador.
Os cravos são “apenas” simbólicos? São. Mas é justamente por serem simbólicos que a esquerda os usa como quem finca bandeiras em território conquistado. Desde 1976 que Abril foi convertido num exclusivo partidário, um dogma portátil, uma espécie de licença ideológica que permite chantagem moral sempre que convém. Ventura, ao retirar os cravos, retirou a máscara a essa propriedade privada da História [2].
A reacção do jornalistado foi de antologia. Pivots alarmados, analistas em sobressalto, comentadores em modo pavloviano: todos sentidos na defesa da liturgia dos cravos, como se a democracia portuguesa colapsasse perante um gesto de higiene simbólica. O regime jornalístico revelou o seu verdadeiro nervo: não protege símbolos — protege narrativas [3].
Curiosamente, nenhum dos indignados esclareceu o essencial: a “boa convivência democrática” não obriga ninguém a aceitar símbolos da extrema-esquerda. Obriga, sim, a garantir participação política, respeito pelas leis e liberdade de expressão. Mas aceitar a decoração partidária da Assembleia da República? Isso, meus caros, não faz parte de nenhum manual constitucional. Faz parte de outra coisa: a velha confusão entre Portugal e a redacção do Diário de Notícias de 1975 [4].
A ironia é que os mesmos que berram pela “moderação” são os primeiros a impor símbolos radicais como se fossem relicários da República. Hoje é um cravo. Amanhã, quem sabe, teremos discursos feitos em cima de uma foice e um martelo, tudo em nome da etiqueta democrática. A esquerda sabe que ganhou a batalha simbólica durante décadas — por isso reage com furor quando alguém, pela primeira vez em muito tempo, contesta os adereços da sua narrativa.
O que verdadeiramente irritou o regime foi isto: Ventura expôs o tabu que ninguém quer discutir — o 25 de Novembro separa democratas e totalitários [5].
Separou-os em 1975; separa-os hoje.
O país tem sido condicionado a aceitar que discutir Novembro “divide”. Pois divide.
E ainda bem. Democracias fazem-se de conflitos abertos, não de concórdias impostas. As concórdias, deixemo-las para os sistemas que preferem povos dóceis e símbolos únicos. O Estado Novo sabia isso. O PREC também. O regime mediático, pelos vistos, continua a sabê-lo [6].
O discurso de Ventura, longe de incendiar coisa alguma, devolveu ao Parlamento o que este parecia ter esquecido: a democracia é plural, conflituosa e irreconciliável nos seus fundamentos mais profundos. Foi assim que Abril prometeu ser. Foi assim que Novembro garantiu que voltasse a ser.
Quando o regime resmunga que “Ventura põe o país a falar dele”, engana-se mais uma vez. Ninguém está a falar de Ventura — está-se a falar do país. Está-se a falar da História. E está-se a falar das falsificações que, durante meio século, muitos aceitaram como inevitáveis por pura fadiga moral.
Ventura não representou o jornalistado. Não representou o comentariado. Representou quem votou nele — e lembrou ao país que símbolos não são intocáveis, narrativas não são dogmas e que democracia não é uma coreografia de boas-maneiras, mas o confronto ordeiro das discórdias insanáveis que nos definem enquanto povo livre [7].
Notas:
[1] Episódio amplamente relatado durante a sessão parlamentar evocativa do 25 de Novembro.
[2] A apropriação simbólica do 25 de Abril pela esquerda é uma constante da historiografia militante desde finais dos anos 70.
[3] A reacção pública dos comentadores televisivos ilustra o fenómeno do jornalismo-activista, já analisado em textos anteriores no ReVisões.
[4] A confusão entre institucionalidade e militância política é um traço persistente dos resquícios ideológicos do PREC.
[5] Como vários historiadores — Rui Ramos, Jaime Nogueira Pinto, entre outros — têm lembrado, o 25 de Novembro encerrou a deriva proto-totalitária do PREC.
[6] A “concórdia obrigatória” tem longas raízes no imaginário autoritário português, tanto à direita como à esquerda.
[7] A defesa do pluralismo democrático exige, por vezes, a rudeza necessária para romper liturgias que se tornaram dogmas.