Cinquenta anos depois, se calhar já podemos dizer o óbvio: a esquerda tratou meio milhão de portugueses com mais desumanidade do que agora acusa a direita, toda ela, de lidar com os estrangeiros.
(Nuno Gonçalo Poças)
Chamaram-lhe “Ponte Aérea”, mas foi uma espécie de “aterragem forçada” de vidas inteiras. Há cinquenta anos terminava a maior operação de evacuação aérea da história portuguesa, com cerca de meio milhão de portugueses, caídos literalmente do céu, a chegar à capital de um império que então se extinguia.
Vieram essencialmente de Angola e Moçambique com pouco, e muitos com quase nada. Um cartão de embarque, uma pasta com documentos, caixotes com os seus bens que nunca mais viram, filhos ao colo e vidas às costas. Tinham nomes, histórias, profissões, raízes, cultura e vistas largas. Perderam quase tudo. Ganharam um nome: retornados.
Portugal, então recém-saído da ditadura e mergulhado na anarquia revolucionária de um PREC sem bússola, olhou para este meio milhão de concidadãos com desconfiança e hostilidade. Tinham sido colonos, diziam. Eram ricos, exploradores, “os do Ultramar”. Fascistas, naturalmente. Foram um dos inimigos fáceis da sede revolucionária, com a agravante de não terem sequer mecanismos para reagir.
Mas o mais notável em toda a história do regresso dos nacionais a Lisboa não foi a hostilidade com que foram recebidos, mas o que os próprios fizeram com a ostracização a que foram sujeitos. Não se tornaram reféns da vitimização, deitaram mãos à obra. Os portugueses que vinham das colónias sabiam que o mundo acaba num horizonte largo, e não ao fundo do Chiado. Trouxeram hábitos, capacidade de trabalho, cultura de gestão, formas de estar, até palavras novas. Abriram cafés, empresas, oficinas, fábricas. Reconstruíram-se contra a cultura hegemónica, sempre marxista, e fizeram-no sem pedir favores; sem subsídios, sem planos estratégicos. Fizeram o que faz quem não tem alternativa, que é sempre a maior das forças motoras, num país que estava habituado a não fazer nada ou a fazer muito pouco.
Os “retornados” continuam a ser uma ferida mal contada da nossa memória colectiva. Nunca houve um esforço sério para integrar a sua história na narrativa do regime. Continuam, talvez, a ser estranhos num país de gente amorfa. Talvez porque nos expõem as fraquezas, e exibem, sem contemplações, a desumanidade do progressismo revolucionário.
Cinquenta anos depois, se calhar já podemos dizer o óbvio: a esquerda tratou meio milhão de portugueses com mais desumanidade do que agora acusa a direita, toda ela, de lidar com os estrangeiros. Em Portugal, onde toda a gente aprecia apregoar a sua bondade e gosta de se compadecer de tudo, subsiste um manto de silêncio oficial e oficioso para quem perdeu tudo e recomeçou tudo. Talvez porque não aceitaram o rótulo de vítimas, a única categoria que um país injectado de vulgata marxista aprecia.
O 50.º aniversário da Ponte Aérea devia ser um marco nacional. Não para reabrir feridas, mas para agradecer. Para dizer obrigado a quem chegou com medo e ainda assim teve coragem. Obrigado a quem foi insultado e não desistiu. Obrigado a quem transformou a sua desgraça pessoal numa força colectiva.
Num tempo em que se debate tanto a identidade, o acolhimento e os direitos, talvez seja boa ideia começar por fazer justiça a quem sempre foi da casa e nunca teve direito a entrar pela porta da frente.

