quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Um dia: Estrangeiros na própria terra?

Há frases que soam a profecias, mesmo quando são ditas ao acaso. Esta, por exemplo:

“E, se tudo se mantiver como está com o reagrupamento familiar e por aí fora, bem, qualquer dia também acontecerá cá aquilo que acontece noutras sociedades em que as pessoas, os nacionais, as pessoas que fazem parte daquela sociedade, se sentem estrangeiras na sua própria terra.”(Pedro Passos Coelho)

Dita assim, entre o “bem” e o “por aí fora”, parece um desabafo. Mas por trás há uma inquietação profunda, uma espécie de cansaço silencioso de quem olha em volta e já não reconhece o sítio onde vive.

É uma sensação cada vez mais comum — e perigosa. Porque quando um cidadão começa a sentir-se estrangeiro no seu próprio país, é o próprio pacto social que se desfaz. E não é apenas por causa de quem chega, mas também por causa de quem já cá está e decidiu deixar que o país se tornasse apenas um “espaço de passagem”, sem cultura comum, sem projeto, sem fronteiras mentais nem materiais.
O discurso sobre o reagrupamento familiar, a integração e a diversidade costuma vir embrulhado em boas intenções. Fala-se de acolhimento, de humanidade, de solidariedade. Tudo conceitos nobres — e necessários. Mas há uma fronteira subtil entre acolher e dissolver-se. Entre ser aberto e ser indefinido. Entre integrar e desistir de se reconhecer.
É aqui que entra o desconforto. O português que já se sente deslocado no próprio bairro, que vê as escolas transformadas em mosaicos culturais mas sem língua comum, que ouve mais vezes o som do “outro” do que o eco do “nós”. E depois vem a culpa: não se pode dizer isto em voz alta, sob pena de ser imediatamente carimbado como “xenófobo”.
O problema é que a conversa pública sobre imigração se tornou um campo minado. Há os que negam qualquer problema — e há os que transformam todo o problema numa guerra civilizacional. Nenhum dos extremos ajuda. Porque o que está em causa não é a origem de quem chega, mas o rumo de quem recebe.
Portugal tem uma longa tradição de emigração e acolhimento. Somos um povo que saiu e que voltou, que aprendeu línguas e que ensinou outras. Mas havia sempre uma âncora — uma ideia de casa. Hoje, essa âncora parece soltar-se. A globalização tornou tudo mais rápido e mais impessoal: o trabalhador é “mobilidade”, o bairro é “diversidade”, o país é “mercado”. E, no meio disso, o cidadão sente-se inquilino da própria história.
Há países que já passaram por isto: França, Reino Unido, Suécia. Sociedades onde o discurso do “multiculturalismo” se transformou, com o tempo, numa coleção de comunidades paralelas, onde a coexistência substituiu a convivência. Onde o “nós” se partiu em ilhas identitárias. Quando se chega a esse ponto, o passo seguinte é a desconfiança: cada grupo começa a defender o seu território simbólico, e o Estado passa a ser apenas um árbitro cansado.
Ainda vamos a tempo de evitar isso — mas só se tivermos coragem para fazer duas coisas que raramente andam juntas: pensar e decidir. Pensar no país que queremos ser, sem medo de falar de limites, de regras, de reciprocidade. E decidir que a hospitalidade não significa autoanulação.
Integrar implica exigência — aprender a língua, respeitar os costumes, participar na vida cívica. Mas também implica que quem já cá está acredite que vale a pena manter uma identidade comum. Uma sociedade que não se reconhece não integra ninguém; apenas absorve por inércia, como quem enche um copo rachado.

Talvez o verdadeiro desafio do nosso tempo não seja “acolher o outro”, mas não perder o sentido de casa. Porque a casa não é um muro nem uma bandeira — é um conjunto de gestos, de palavras, de memórias partilhadas. E, se deixarmos de cuidar disso, um dia acordamos e percebemos que já não sabemos onde estamos.
E nesse dia, sim, seremos estrangeiros na nossa própria terra. Não por causa de quem chegou — mas por termos esquecido quem somos.