A aprovação no Parlamento de Portugal de um projecto de lei que visa proibir “roupas destinadas a ocultar o rosto” em espaços públicos. (Rádio Renascença)
Desde logo o problema não é só a peça de vestuário, mas o que ela representa — a recusa de visibilidade, a delegação de identidade, o privilégio cultural ou religioso acima do cidadão comum.
A questão não é apenas “sobre o Islão” ou “sobre mulheres”, mas sobre o espírito da liberdade pública e a universalidade do reconhecimento social
O que está em causa
O projecto de lei apresentado por Chega e aprovado com o apoio de PSD, Iniciativa Liberal e CDS – Partido Popular: propõe proibir roupas que ocultem o rosto em espaços públicos, com coimas entre 200 e 4 000 euros, e até pena de prisão no caso de obrigar alguém a ocultar o rosto. (Rádio Renascença)
A posição dos partidos que votaram contra: Partido Socialista (PS), Livre, Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português (PCP) — e as suas justificações: que é um ataque à liberdade de consciência ou religião, que visa ‘estrangeiros’, que não há problema significativo em Portugal, etc. (Rádio Renascença)
Complementa: menção a casos de adaptação especial de serviços públicos ou de oferta de menus religiosos nos espaços públicos ou de ensino — por exemplo em Ceuta/Melilla, contrato escolar que exige “carne halal” e não utiliza carne de porco, para determinados colégios. (Newtral)
O ponto: estes são sinais de que o “espaço público” está a dar lugar a “espaços culturais/religiosos reservados” ou “privilégios comunitários”, em vez da igualdade de cidadania.
véu, burca e niqab — mais do que um símbolo
A burca, o niqab, as roupas que ocultam o rosto não são apenas vestuário: são símbolos de invisibilidade. Invisibilidade da pessoa, invisibilidade da voz, invisibilidade da responsabilidade pública.
Num regime democrático, cada cidadão deveria aparecer, responder pelos seus actos, ter rosto, ter identidade social — o véu integral impede isso.
Além disso, há uma questão de segurança, reconhecimento, comunicação: ocultar o rosto cria obstáculos ao funcionamento normal da vida pública (identificação, interacção, transparência).
Tem ainda uma dimensão de subordinado ou silenciado: à mulher que cobre o rosto, impõe-se um papel que alheia a condição plena de cidadã visível.
Quando o Estado permite ou se omite perante esse tipo de vestuário em espaços públicos, está a aceitar uma forma de “cidadania de segunda categoria” ou “paralelismo cultural” — o que é intolerável.
Partidos que votam “não” por cumplicidade ou por covardia?
O PS, Livre, Bloco e PCP votaram contra esta lei. O PS, por exemplo, disse que “ninguém no Parlamento se sente confortável com a utilização da burca” mas votou contra. (Rádio Renascença)
Essa posição revela ou uma contradição ou uma priorização de discurso multicultural acima da coesão do espaço público.
Será que estes partidos preferem manter “o multiculturalismo a todo o custo” em vez de defender a visibilidade do indivíduo e a igualdade perante a lei?
Ou será que têm medo do “debate do outro”, do “estrangeiro”, do “islamismo” — e preferem abdicar da lei para evitar polêmica?
A atitude é especialmente grave porque aceitar a ocultação do rosto é aceitar que parte da população não participe plenamente, que não seja visível, que não tenha direito à presença plena no corpo social.
“privilégios comunitários” versus a erosão do espaço público comum
O contrato em Ceuta/Melilla mostra que em alguns colégios se exige carne halal e não se utiliza carne de porco — por decisão administrativa. (Newtral)
Isso ilustra como o estado ou as instituições públicas cedem à lógica das “minorias religiosas/culturais” de modo a criar espaços diferenciados.
Quando se permite ocultar o rosto ou se adapta o menu escolar ao religioso sem contrapartida, está a instaurar-se um regime de exceção dentro da comunidade de todos.
O resultado: menos cidadania comum, menos convivência, mais fragmentação. Em vez de integrar, dividimos.
Nesta lógica, o véu integral e outras formas de ocultação funcionam como marcadores de diferença que o Estado permite ou tolera — e isso é perigoso para a democracia.
O apelo necessário
Apelo aos partidos: escolham a visibilidade da cidadania, a igualdade perante o Estado, a coerência da lei, em vez de abdicar em nome de discursos de tolerância que na prática se tornam tolerância da invisibilidade.
Apelo à sociedade: rejeitem a ideia de que “cada grupo faz o que quiser no seu canto” quando esse canto é o espaço público — porque espaço público é de todos, não de facções.
Conclusão: O rosto humano no espaço público não é apenas detalhe — é símbolo de liberdade, de presença, de responsabilidade. Permitir o "ser coberto ou escondido" é permitir que a cidadania seja fragmentada, que a visibilidade seja privilégio, que o Estado seja cúmplice da invisibilidade.
E, se os partidos e os decisores continuarem a adiar a questão ou a relativizá-la, então este processo de invisibilidade institucional será mais grave do que o debate presente — será um sintoma de erosão da própria democracia.