Contei o 11 de Março – não este último, o outro de 1975– numa passagem de Novembro, um romance cuja acção decorre entre o Verão de 1973 e 25 de Novembro de 1975 e que é um retrato do Portugal desse tempo. Um Portugal que acabou.
No dia 11 de Março de 1975 estava em Joanesburgo, na África do Sul, e foi daí que segui, com outros exilados e emigrados portugueses, a jornada festiva do PREC, cuja amargas consequências ainda hoje pagamos.
À época estava em marcha na oficialidade das Forças Armadas, ou no que restava dela, um movimento de recuperação conservadora, que se confirmara na eleição para os conselhos das Armas de elementos “spinolistas”, ou do que ficara da direita militar.
O 25 de Abril viera da incapacidade de Marcelo Caetano (e do regime) de encontrar uma solução para a guerra de África, num país onde o europeísmo e o anticolonialismo tinham, respectivamente, tomado conta das cabeças da tecnoburocracia e da maioria dos intelectuais e universitários. Salazar deixara um regime político que só funcionava com ele e Marcelo Caetano não conseguira liberalizar e manter o esforço da guerra. Pairava entre essas opções, acabando por comprometer as duas.
As forças de oposição que tinham chegado ao poder no pós-25 de Abril eram os herdeiros da oposição democrática, do “Reviralho”, já convertidos por Mário Soares à descolonização; havia ainda os “liberais” do marcelismo, com Sá Carneiro; o Partido Comunista, de Cunhal; e um grande número de grupúsculos esquerdistas – trotskistas, anarquistas, maoístas, “albaneses” – todos na obsessão de se ultrapassarem uns aos outros pela esquerda, pedindo a nacionalização das mercearias ou requerendo o fuzilamento dos padres. Um folclore absurdo, mas, ao tempo, levado a sério pelos muitos que por ali flutuavam e que depois iriam, quase todos, aterrar no Centrão.
Cada um desses grupos aliciava os seus militares ou capitães de serviço, dando-lhes um pensamento mais ou menos adequado à justificação nobilitante do seu descontentamento. Todos estavam unidos contra o fascismo e contra a reacção que espreitavam os democratas e a democracia, qual lobo a espreitar o capuchinho. E para que a história não seguisse os trâmites tradicionais tinham de estar vigilantes. E estavam.
Dessa vigilância democrática, dessa acção preventiva ou por antecipação, nasceram as sucessivas etapas do PREC: no 28 de Setembro de 1974, tinha sido a inventona da “maioria silenciosa” para neutralizar os mais perigosos – partidos como o Partido do Progresso, que estavam a defender, em democracia e por regras democráticas, os valores da Direita e que estavam a juntar muita gente. Ao mesmo tempo, tratara-se de neutralizar tudo o que na universidade era denunciado pelos associativos como “fascista”. Pelo sim, pelo não.
Eram então os reaccionários e os fascistas o perigo a cancelar, a diabolizar, a caluniar, a neutralizar, a prender, a proibir. No 28 de Setembro de 74, o COPCON encarregou-se de o fazer. Entre os que foram presos e os que tiveram de sair do país para o não serem, terão sido umas três centenas. Porque, como diria um grande símbolo e chefe do Centrão, só “com os fascistas presos” se podia “construir a democracia”.
E para construir a democracia havia, antes do mais, que descolonizar – afinal a África não era uma obsessão de Salazar? E depois, que importava, perante o grande gesto libertador, a sorte dos milhares que “regressavam” a um rectângulo de onde nunca tinham partido e a sorte das populações?
Entretanto, nos meios emigrados e refugiados de Madrid, aparecia insistentemente um boato sobre uma tal “matança da Páscoa”, uma chacina de militares e civis conservadores, uma chacina que, talvez pela falta de mão-de-obra local teria o concurso de especialistas internacionais … Nem mais nem menos que os Tupamaros, os famosos guerrilheiros esquerdistas uruguaios. De Madrid, o boato veio para Lisboa e aterrou entre os spinolistas, os que estavam a vencer as eleições para os conselhos das armas. Teriam os elementos da esquerda militar radical, alarmados com a progressiva perda do poder recorrido a um processo clássico de provocação, que o almirante Rosa Coutinho resumia numa cativante fórmula popular – “picar o bicho, para o tirar da toca?”
Era um tempo de grande intrigalhada, clássica entre refugiados, emigrados, homiziados, ansiosos por uma reviravolta, com o habitual enxamear dos familiarizados, reais ou imaginários, com as “secretas”; e era supostamente através das secretas, espanholas ou francesas, que chegava a notícia da tal “matança”.
A imprensa ajudava à festa e lá ia trazendo histórias da CIA e do Spínola. Até o Témoignage Chrétien (por alguns chamado de Témoignage Crétin) trazia a história do golpe contra-revolucionário.
No dia 11 de Março, lá veio, ao fim da manhã (uma hora inédita para um golpe), o bombardeamento do RAL1, emblemática unidade esquerdista da capital, onde já tinha havido fuzilamentos simulados de “fascistas”. Seguiu-se uma largada de paraquedistas “contra-revolucionários” capitaneados pelo capitão Sebastião Martins, que encetou com o comandante do RALIS, o famoso Dinis de Almeida, um diálogo digno da “guerra do Solnado”.
Algumas das missões cumpriram-se como a ocupação do Rádio Clube Português. Vários dos civis voluntários para estas operações foram presos, outros escaparam. Spínola, entretanto, estava em Tancos, para onde fora na véspera à noite. Quando tudo correu mal, embarcou num helicóptero para Espanha.
A vaga de terror e de prisões desencadeada pelos comunistas e várias famílias esquerdistas, levou a mais umas centenas de prisões e à estatização de grande parte do sector privado português – 250 empresas foram nacionalizadas. Foi de facto, numa revolução que prosseguia por episódios e saltos bruscos, muito pressionados também pelo exterior, uma importante guinada à esquerda.
A golpada e o processo revolucionário que lhe deu curso provocaram, naturalmente, uma reacção – a reacção popular de Norte para Sul, que levaria aos ataques às sedes do Partido Comunista e ao emergir de “dois países” em conflito que iria desembocar no 25 de Novembro, duas semanas depois da independência de Angola.
A guerra civil não chegaria a vir. Os comunistas não a queriam porque sabiam que a perderiam e porque Ialta estava em vigor. Manteriam, como era do interesse de Moscovo, uma pressão sobre o poder até à independência de Angola. Depois retirariam para os quarteis de Inverno.
A economia nacional nunca mais recuperou do golpe sofrido. Nem Portugal, a bem dizer. Basta acompanhar o folhetim deste último 11 de Março (de 2025).