domingo, 6 de abril de 2008

o maior ataque aos pobres desde o fim da escravatura!

OS POBRES ESTÃO PROIBIDOS O mundo moderno orgulha-se da sensibilidade social e preocupação com os necessitados. O Governo faz gala nisso. O nosso tempo acaba de conseguir uma grande vitória na vida dos pobres. Não acabou com a miséria. Limitou-se a proibi-la. É que, sabem, a pobreza viola os direitos do consumidor e as regras higiénicas da produção.
A nova polícia encarregada de vigiar a interdição da indigência é a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, ASAE. Segundo as regras por que se rege, grande parte dos pequenos negócios, empresas modestas e produtos tradicionais, bem como as vendas, bens e esmolas de que vivem as pessoas carenciadas ficam banidas. É pena, mas não há lugar para pobres na sociedade asséptica que pretendemos.
É evidente que as exigências impostas nos regulamentos e fiscalizadas nas inspecções impossibilitam a sobrevivência das empresas menores. Obras necessárias, aparelhos impostos, dimensões requeridas são inacessíveis, excepto às multinacionais, grandes cadeias e empresas ricas, que a lei favorece. Os pequenos ficam rejeitados. Pode dizer-se que a actuação da ASAE constitui o maior ataque aos pobres desde o fim da escravatura.
Alguns argumentam que não é esse o espírito da lei nem o sentido da acção da Autoridade. Mas as notícias recentes desmentem essa interpretação favorável. O número de velhas tradições alimentares agredidas é tal que deixou de ser novidade. A 14 de Janeiro passado, a ASAE visitou o Centro de Dia de Póvoa da Atalaia, Fundão. Aí impôs obras caras, destruiu a marmelada que tinha sido oferecida pelos vizinhos e levou frangos e pastéis dados como esmola (Lusa, 06.03.2008). O jejum a que a Autoridade condenou aqueles pobres velhos foi feito em defesa da sua higiene alimentar. Parece que ter fome não é contra os regulamentos do consumidor.
Para juntar insulto ao agravo, recentemente a Autoridade lançou a sua "maior operação de sempre" com prisões e apreensões para "celebrar o dia do consumidor" (Lusa, 14.03.2008). Como os selvagens, a ASAE celebra contando escalpes. Entretanto os verdadeiros criminosos continuam a operar e a criar problemas sanitários e ambientais. O mais trágico nesta tolice monstruosa é que, enquanto anda a perder tempo a perseguir os pobres, a ASAE descura a sua verdadeira missão, que é mesmo muito importante.
Será que alguém pode ser tão estúpido, insensível e maldoso? Esta hipótese nunca deve ser descartada, sobretudo nos tempos que correm. Mas a explicação é capaz de ser outra. Só um iluminado pode fazer erros tão crassos. O que realmente se passa é que a ASAE não se considera uma polícia nem se vê a perseguir malfeitores. A sua missão suprema é educar o povo para a segurança alimentar. A finalidade é mudar o mundo. O seu objecto são, não os criminosos, mas toda a população. O que temos aqui é um conjunto de fanáticos com meios para impor às gentes ignaras o que julga ser o seu verdadeiro bem. Desta atitude saíram as maiores catástrofes da história.
Mas a culpa última não é da ASAE. Ela é responsável pela arrogância, tolice e insensibilidade com que aplica a lei. Mas a origem está nas autoridades portuguesas e europeias que criaram um tal emaranhado de ordens, regras e regulamentos que impedem a vida comum. A incongruência e irresponsabilidade da legislação, nas mãos de fanáticos, criam inevitáveis desgraças. A lei anula-se a si mesma. Ao promover o consumidor esquece o produtor, ao favorecer o investimento ignora o ambiente, ao cuidar do mercado desequilibra a saúde. Quem queira cumprir à risca o estipulado não sobrevive. Nem sequer quem o impõe: "Sede da ASAE [no Porto] não cumpre regras impostas pela ASAE" (JN, 17 de Fevereiro).Numa sociedade democrática, a responsabilidade última está nos eleitores. Os séculos futuros vão rir de um tempo tão ingénuo que quis leis e regulamentos para todo e qualquer aspecto da vida. Esta obsessão legalista, mecanicista, materialista, se nos traz ganhos importantes, acaba por asfixiar a realidade. Como sempre, os pobres são os primeiros a sofrer. João César das Neves