Costa nunca fez outra coisa na vida senão servir a causa pública, o que torna a saída de cena mais patética. Foi de missionário a demissionário
Dignidade e elevação, portanto. Mas, porém, todavia, contudo.
Recapitulemos. O
Presidente reuniu o Conselho de Estado antes de tomar uma decisão que acabou
por ser só dele. Uns dias depois da reunião, secreta, sigilosa, como compete a
um altíssimo e respeitabilíssimo órgão de consulta, apareceu no jornal
“Público” o relato de tudo o que tinha acontecido na reunião. Quem tinha dito o
quê, quem tinha votado a favor e contra a manutenção do Governo do PS com um
primeiro-ministro nomeado pelo primeiro-ministro demissionário. Apareceram as
fotografias, as cabecinhas de quem tinha votado o quê, para não restarem
dúvidas sobre a denúncia. E assim o sigilo se foi, na maior indignidade do
denunciante que, percebe-se, desejou com isto beneficiar o PS e dizer que gente
respeitável como o general Ramalho Eanes queria que o Governo continuasse.
Quebra de sigilo neste órgão deveria constituir motivo necessário e suficiente
para a sua dissolução. Deixou de ser o que pretendia ser.
A seguir, o Presidente
tomou a responsabilidade da decisão de dissolver, deixando o Governo em funções
mais uns meses. Decisão salomónica, que ninguém parece ter apreciado. Agradeceu
ao primeiro-ministro demissionário a dignidade e elevação e os anos de serviço
público. Faltavam mais anos do que os que o Presidente referiu, porque António
Costa está na causa pública desde sempre. Nunca fez outra coisa na vida senão
servir a causa pública, o que torna a saída de cena mais patética. Foi de
missionário a demissionário.
Uma hora mais tarde,
mais ou menos, o primeiro-ministro demissionário falou aos jornalistas em
frente à sede do PS, antes de uma reunião. Num pequeno comício, criticou com
aspereza e deselegância a decisão do Presidente e apresentou a solução, um
Governo liderado por Mário Centeno, governador do Banco de Portugal. Elogiou
Centeno, um tecnocrata com boa reputação, disse, conhecedor dos assuntos
europeus, tendo desempenhado um cargo internacional. As mesmas razões por que,
in illo tempore, consta, Costa decidiu arrumar Centeno no Banco de Portugal e
afastá-lo de uma carreira internacional que cobiçava. Centeno tinha uma sombra
pesada, era agora o salvador da pátria. Centeno estava em silêncio.
Entretanto,
soubemos pelos jornais duas coisas. Que Pedro Nuno Santos ia avançar e que José
Luís Carneiro também. Soubemos a seguir que Pedro Nuno Santos tinha almoçado
com a personagem Ascenso Simões, o que logo indicia que os almoços continuam a
ser uma tradição inquebrável em Portugal, com gastos despiciendos ou sem. A
personagem Ascenso confessou ao “Observador” que Vítor Escária precisava de
duas lambadas na cara. Não se sabe se terá dito focinho, a fórmula química
exata de frase tão portuguesa.
Entretanto, o
advogado do dito Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro, esclarecia
que o dinheiro escondido nos livros e nos vinhos era legal, e resultava de uma
coisa antiga, “em Angola”. E o advogado do “amigo” Diogo Lacerda Machado
esclarecia que não havia nada na indiciação e que o Ministério Público iria
abaixo, uma frase dotada de grande peso jurídico.
Havia ainda a história
do ministro caído em desgraça Galamba, que apesar de estar nas histórias do
lítio e do hidrogénio verde, era denunciado como consumidor de haxixe, “em
casa”, e como tendo usado o carro e o motorista da função para levar as filhas
e para ir “buscar vinho”. A preponderância dos vinhos nesta história está por
investigar, pode haver uma correlação. Talvez a operação se devesse chamar
“Under the Influence”, o termo inglês para condução sob o efeito do álcool, em
vez de Influencer. Galamba, do alto da dignidade, disse que não se demitia. E
que tinha condições para continuar.
Entretanto, Mário
Centeno quebrou o silêncio para dizer que tinha sido convidado, ou sondado,
para primeiro-ministro por Marcelo Rebelo de Sousa, uma entidade diferente do
Presidente. O Presidente nunca faria as coisas que o Marcelo faz. E foi o
Presidente que lhe respondeu, dizendo que não era verdade e que jamais o tinha
convidado ou sondado. Mário Centeno, prudentemente, retratou-se, e disse que
afinal não tinha sido convidado pelo Presidente. Era mentira. A bem da
dignidade.
Entretanto, o
primeiro-ministro falou à Nação, apesar de estar demissionário, em breve
demitido quando os pró-formas se efetivarem. Fez um novo comício de
autodesculpabilização usando a sede do Governo e, em tom magoado, disse que
nunca tivera amigos, porque um político da craveira dele não tem amigos, e que
o dinheiro vivo que matou Escária, e o matou a ele, era uma vergonha e não
sabia de nada.
O povo acredita, e
acredita que António Costa nunca desviou um cêntimo para si mesmo. Não acredita
que não tivesse lido o currículo de Escária quando o contratou como chefe de
gabinete e que não soubesse que tipo de amizade entretivera com Lacerda durante
tantos anos, em que Lacerda se inseria em tudo o que era grande negócio do
Estado com o aval e complacência de Costa. Costa, inchado de húbris, cai sobre
a própria espada.
Em seguida, soubemos
que Pedro Nuno Santos ia “conversar” com Ana Catarina Mendes, em vez de
“almoçar”. A grande vantagem das mulheres é não apreciarem almoçaradas. Nem
gastos não despiciendos. Pelo menos, em comida. Por causa da linha, as mulheres
são muito disciplinadas.
Entretanto, o
dito Galamba, que nunca se demitiria e tinha condições para continuar,
demitiu-se. Antes, tinha avisado, se certas coisas não fossem feitas, por ele,
entenda-se, perdíamos os milhões do PRR. Depois de mim, o dilúvio.
Fiquemos por aqui.
Qualquer outro partido que fizesse metade, um terço destas patifarias e
trapalhices, já teria sido engolido vivo. O Partido Socialista, o
seu corpus e a sua ideologia esparsa e difusa, tanto é de esquerda
como de centro como não é nada a não ser a favor da sobrevivência política e
pessoal, possui uma resistência aos escândalos e desaires que os outros
partidos não têm. António Costa é o perfeito exemplar deste estado de coisas.
Passos Coelho foi crucificado por muito menos. O PS sobreviveu ao escândalo da
Casa Pia, a única vez que correu perigo sério e em que atiraram a matar para
destruir o partido e seus dirigentes, sobreviveu à demissão de Guterres, e
fuga, sobreviveu ao escândalo de Sócrates, único na história de democracia
portuguesa, sobreviveu aos erros e horrores da pandemia (que não foi o sucesso
imputado a Costa, que a certa altura estava mais interessado em trazer para
Portugal um campeonato de futebol do que no confinamento, chamando a isto um
“prémio” aos médicos e trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde — a mais
asinina frase da democracia portuguesa) e sobreviveu aos escândalos deste
Governo. Pedrógão, Tancos, negócios corruptos da Defesa, o transfronteiriço de
outro nomeado de Costa com cadáveres no armário, e as guerras com os
professores e os médicos. Fora o resto. A pouco e pouco, por inércia,
incompetência e arrogância do Governo, vimos esboroarem-se o SNS e a educação
pública.
Ora nada disto faz
parar o PS para pensar. O PS julga-se o único partido competente e inteligente
para governar a pátria, e acha-se o destinatário de um direito divino. O PS
comporta-se como uma monarquia, com famílias reais, uma aristocracia que não
renuncia aos privilégios, uma corte de serventes e serviçais, e direitos
dinásticos. O mote real é “Habituem-se!”. A insígnia é “contra tudo e contra
todos”.
São socialistas e
basta, o título sugere uma supremacia moral. Este PS não aceita pactos de
regime, usa a direita ou a esquerda conforme lhe convém para se manter à tona.
E acha-se a única garantia contra o Chega e a ameaça corporizada em André
Ventura. Na verdade, usa Ventura como o papão da democracia, tal como usara
Passos Coelho como o papão da austeridade e da justiça social.
Com o mestre da
sobrevivência António Costa, todas estas características se acentuaram,
agravadas pelo facto de o pessoal político se ter desqualificado. A
aristocracia dos tempos da fundação era agora um corpo de videirinhos e
trepadores sociais, com raras exceções. A prova disto é que em Portugal a única
coisa que se discute é dinheiro, ou a falta dele.
O mundo está a arder, as causas ditas humanistas ou ideológicas regressaram, há um veio de idealismo que reaparece quando há guerra e crise aguda das nações e das potências. Aqui, no cantinho, discute-se a conta da mercearia e quem roubou no peso. Este PS não vai sair de cena com facilidade, não admite a derrota, não tem escrúpulos morais. Não tem emprego.
“Um
fraco rei faz fraca a forte gente”, disse Luís de
Camões.
(Clara Ferreira Alves no
Espesso em 16 novembro 2023 08:23)