Numa das mais conhecidas novelas de
Gabriel Garcia Márquez, um velho veterano de guerra espera na sua ilha que
chegue a carta coma notícia que lhe foi atribuída a pensão que lhe permitiria
escapar à vida de miséria que leva. Mas a carta não chega, nunca mais chega, e
por isso, se Ninguém Escreve ao Coronel, este acaba... Bem, leiam Garcia
Márquez, que ele merece, pois o me fez lembrar este romance não foi o seu
enredo, mas o seu título: é que, percorrendo a imprensa deste últimos dias,
ninguém escreve em defesa de Rocha Andrade, o secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais que aceitou ir ver dois jogos da selecção a convite (com tudo
pago) da Galp, uma empresa que está em litígio com o Estado por causa,
exactamente, de uma questão fiscal.
Senão, vejam este apanhado do que foi publicado nos dois últimos dias na imprensa portuguesa:
O problema de não se dar ao respeito, que eu mesmo
escrevi para o Observador, onde analiso em detalhe a conferência de imprensa e
os argumentos do ministro dos Negócios Estrangeiros (que representa o
primeiro-ministro em férias) e onde contesto a ideia de que o pagamento das
despesas pelos secretários de Estado permitam considerar o caso encerrado: “Se
não houve violação da lei, porquê o pagamento? Então não foi este mesmo Governo
que acabou de decidir devolver ao Presidente da República o cheque com que este
quis pagar um voo de Falcon para ir assistir a um dos jogos da selecção? Nesse
caso não havia qualquer dúvida, não era para pagar, e agora é necessário
“dissipar dúvidas”? A leitura é clara: se, por um lado, o ministro tentou
proteger os secretários de Estado com a leitura que fez do Código Penal, ao
elogiar o pagamento e ao anunciar o código de conduta está a dizer-nos que,
eticamente, o que eles fizeram levanta “dúvidas”. E que daqui por umas semanas
até vai deixar de ser “ético”. Ou seja, enterrou-os ainda mais.”
Rocha Andrade e as prendas da Galp, de João Miguel Tavares
no Público, onde este lembra o código de comportamento que os deputados do PS
assinaram e contrasta esse gesto politico com aquilo que sabemos: “Ups, lá se
vai o código de António Costa. É óbvio que tal conflito existe, por muito
apetecível que seja ir à borla à final de um Europeu. Aceitar tais convites
pode ser banal, e acredito que se tivéssemos acesso à lista integral de
convidados da Galp passaríamos 15 dias a indignar-nos. Mas por alguma razão o
convite foi endereçado a Rocha Andrade e não a mim, nem a si, caro leitor. Um
secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ir à bola patrocinado por um
contribuinte da dimensão da Galp não é natural, não é adequado socialmente, e
muito menos é adequado politicamente.”
"O pagamento dissipa as dúvidas?" Não. Agrava-as!,
de Camilo Azevedo no Jornal de Negócios: “A comunicação de que o secretário de
Estado dos Impostos pagará a viagem do seu bolso resolve o problema (como disse
o ministro dos Negócios Estrangeiros na conferência de imprensa)? Não.
Agrava-o. Ao pagar, o governante reconhece que não devia ter aceitado o convite
da Galp. E, pior ainda, que só o fez depois de a história divulgada pela revista
Sábado ter ganho dimensão de escândalo.”
O 'hit' de Verão da Galp, de Tiago Freire no mesmo Jornal
de Negócios, que dando o benefício da dúvida a Rocha Andrade, não deixa de
criticar o seu comportamento: “Até prova em contrário, parece ser uma pessoa
séria e de convicções, e não é isto que o muda. Mas sendo titular de uma pasta
política com natural contacto com um dos maiores contribuintes portugueses, o
Secretário de Estado devia ter tido o bom senso de declinar o convite
institucional que lhe foi feito. Por uma simples razão: uma viagem ou um jantar
não está associado directamente a um favor, mas temos sempre de nos perguntar o
que a leva a empresa a fazer determinado convite.”
Regras e transparência, o editorial de Leonídio Paulo
Ferreira no Diário de Notícias: “É importante que haja bom senso da parte de
quem aceita um convite. Não é o mesmo aceitar um convite da federação e aceitar
um convite de uma empresa, mesmo que patrocinadora. E não é o mesmo aceitar um
convite de uma empresa e aceitar o convite de uma empresa com a qual se está de
alguma forma em conflito.”
Silly mas não demasiado, por favor, de Martim Silva no
Expresso Diário (paywall), que analisa a polémica do IMI e o Galpgate, notando
que “quando o mesmo Rocha Andrade, perante a delicada polémica envolvendo a
Galp, decide, encurralado, que afinal vai pagar uma viagem num avião fretado e
o dinheiro do bilhete. Como se isso resolvesse o problema político entretanto
colocado – do género, 'tomem lá e não se fala mais nisto!'” Aproveita também
para tecer criticas aos partidos da direita que “vêm, ufanos, pedir a cabeça do
secretário de Estado que viaja para ver um jogo da bola, sabendo, como sabem
que a prática é generalizada e tem anos. Ou os governantes do PSD e do CDS
nunca foram ver jogos a convite? Por amor de Deus, quem querem enganar? Já
sabemos, estamos em Agosto. A season é silly. Mas convém não abusar...”
Subir a pulso ou viver de favores, de Raquel Abecasis na
Rádio Renascença, onde se chama a atenção para algo que devia ser claro: “Alguém
acredita que os convites foram feitos por acaso? Não, mas o Governo diz que
isso já lá vai, os senhores vão pagar as despesas e o assunto está encerrado.
Esperemos que não esteja encerrado, porque os dossiers estão na mesa do governo
à espera de decisões que os responsáveis políticos não podem tomar, sob pena de
verem impugnadas as suas decisões.”
Quem não quer ser lobo..., de António Esteves no site da
RTP, onde recorda que a prática deste tipo de convites é bastante generalizada,
mas que isso não iliba o governante: “Acredito que Rocha Andrade tenha pensado
duas coisas quando recebeu o convite, ambas erradas: que várias pessoas recebem
e aceitam, mesmo quando exercem funções governativas, e que sabe bem aproveitar
estas borlas enquanto dura o cargo que as justifica. Poderá até ter acreditado
que não se deixaria condicionar no futuro. Rocha Andrade não percebeu o que
estava em causa e por isso entendeu que pagando o valor das viagens à GALP o
caso estaria resolvido. Não está.”
Rocha Andrade, o sol e as sombras da matéria, de Ana Sá
Lopes no jornal i, um dos primeiros textos a serem publicados e que reflecte
sobre os danos políticos que este caso, associado à polémica do IMI, pode
causar: “Mais problemática do que a taxação do sol, para o secretário de Estado
Rocha Andrade, foi a aceitação de isenção de taxa para ver o futebol, à conta
da Galp, que está em guerra com o Estado por causa do pagamento de impostos. O
que passou pela cabeça do secretário de Estado quando aceitou um convite
destes? Ingenuidade política elevada ao cubo? Ignorância de que o sol já era
taxado, mas a Galp não? A aceitação deste convite fez mais pelo descrédito do
governo do que o aumento do IMI.” (por José Manuel Fernandes no Observador)