2 de Abril de 1976.
Na Assembleia Constituinte os
deputados do PS, PSD, PCP e UDP levantam-se para aprovar uma nova Constituição
da República – a Constituição do país que saíra do 25 de Abril. Amanhã, sábado,
2 de Abril de 2016, para assinalar 40 anos do texto fundamental, o Presidente
da República e o presidente da Assembleia da República almoçarão com deputados constituintes numa das raras –
raríssimas – celebrações da data. Não tinha de ser assim. A Constituição da
República é aquele documento que se está constantemente a referir, mesmo quando
se desconhece a sua história – como foi escrita, mas também como já passou por sete revisões – ou até o seu conteúdo e significado.
Há sensivelmente um ano o Observador lançou um debate sobre a Constituição que temos, e a que poderíamos ter. Criámos uma página especial – Nova Constituição –, promovemos debates académicos em Lisboa, Coimbra e Porto e publicámos alguns ensaios importantes, assim como textos de opinião fortes de uma nova geração de constitucionalistas. A passagem deste 40º aniversário, mesmo não estando a ser comemorada, é uma boa ocasião para recuperarmos alguns dos trabalhos mais importantes. Fazemo-lo neste Macroscópio, mas também o fazemos numa nova página especial, 40 anos da Constituição.
Talvez um dos trabalhos mais interessantes, sobretudo pelo protagonista e pelas circunstância, seja uma entrevista de Rui Ramos a Marcelo Rebelo de Sousa. Isso mesmo: há um ano o agora Presidente da República recordou, numa longa conversa de quase uma hora em que falou com uma liberdade que hoje já não terá, a sua experiência como jovem deputado constituinte (tinha apenas 26 anos). Em Marcelo recorda a Assembleia Constituinte: “Havia a ilusão de que se podia fazer um país novo” revela-se sobretudo o contador de histórias, mas também o professor de Direito e o comentador que, por entre a recordação de casos saborosos, recorda o espírito do tempo, mas não só: Marcelo também analisa a forma como a Constituição foi sendo sucessivamente revista, sempre com a oposição radical dos partidos mais à esquerda, e sempre com estes a recolocarem-se logo a seguir na posição dos guardiães do texto revisto que antes tinham criticado duramente. Vale a pena ouvir, pelo registo descontraído e pelo que se aprende com o Marcelo-que-ainda-não-era-Presidente.
Há também dois ensaios para que vos chamo a atenção (apesar de já o ter feito no Macroscópio na altura em que foram publicados): um é de António Barreto – Em defesa de uma Constituição positiva e simples – e o outro de Rui Ramos – O processo constitucional em curso.
Comecemos por António Barreto, que foi deputado constituinte pelo PS, e neste seu texto defende que cada geração deve assumir e construir a sua liberdade, tal como cada geração deve reconhecer-se na sua Constituição. O sociólogo explica porque considera que a Constituição de 1976 é “uma obra-prima” – “Na ausência de um poder democrático, sem autoridade, com uma Administração Pública e umas Forças Armadas divididas e instáveis, sem legitimidade comprovada, sem uma legalidade indiscutível, foi esta Constituição que preservou a democracia.” – mas, ao mesmo tempo, entende, que esta devia dar mais liberdade de decisão a cada geração – “A nossa vida de todos os dias, as soluções para os problemas dos portugueses e a actividade livre dos cidadãos deveriam depender da governação e da legislação corrente, não da Constituição. Esta não se pode substituir à acção, à administração, à criatividade e à liberdade. As regras concretas de vida devem depender das gerações presentes e da política actual, não de regras constitucionais definidas uma vez por todas. Cada geração deve assumir e construir a sua liberdade, tal como cada geração deve reconhecer-se na sua Constituição.”
Já o ensaio de Rui Ramos é sobre o enquadramento histórico e político que condicionou o desenho da Constituição de 1976, e que esta, no fundo, fosse “sobretudo um pacto, um compromisso. Incluiu tudo, vindo de todo o lado, como num daqueles exercícios surrealistas de “cadavre exquis”. Um sinal da amálgama está em que, tendo os projectos constitucionais apresentados pelos partidos em média 120 artigos cada um, o texto final da Constituição desmultiplicou-se em 312. Quase nada ficou de fora.” Depois de aprovada, foi apropriada pelos sectores mais à esquerda e começou a ser criticada por todos os que compreendiam as suas graves limitações – até porque estabelecia um regime de democracia que ainda continuava a ser “tutelada” por um “Conselho da Revolução”. Ou seja, “Em 1975, ao ser feita, incomodara a esquerda revolucionária; depois de 1976, já feita, irritou a direita democrática.” Vieram então as sucessivas revisões, com todas as suas querelas e limitações:
O pior do processo constitucional
foi a tendência para formatar os grandes debates políticos em termos de uma
“querela constitucional”, artificialmente desenhada: o PCP, que votou contra
todas as revisões, faz de conta que a Constituição é dele, e a direita, que a
sujeitou a todas as revisões, que não tem nada a ver com ela, enquanto, no
meio, o PS guarda o jogo, defendendo o seu antigo papel de charneira do regime.
Ou seja, a Constituição continua a ser simplesmente um tabuleiro de jogo para
os grandes partidos.
Há um outro vídeo do Observador que ajuda a enquadrar, e complementa, estes dois ensaios, um Conversas à Quinta com Jaime Gama, que também foi deputado constituinte, e Jaime Nogueira Pinto, que nessa altura estava exilado, que assinalou a passagem do 40º aniversário da eleição da Assembleia Constituinte: Há 40 anos, a Constituinte: liberdade e revolução num tempo incerto. O que aí se recorda é que nunca em Portugal tinha havido eleições tão democráticas nem tão participadas como as de 25 de Abril de 1975. Foram umas eleições em que ganharam os moderados, mas na verdade a democracia só triunfaria, de vez, sete meses mais tarde, depois de um tórrido "Verão Quente".
Mais recentemente o Conversas à Quinta regressou à forma como foi construindo a Constituição de 1976. Em O pacto em que os militares cederam a tutela do poder político (ou quase), e assim acabaram por tornar possível uma Constituição democrática, recordámos o segundo Pacto MFA/Partidos que permitiu fechar o desenho do sistema político, com uma diminuição de um poder do MFA que, de acordo com o que vinha do primeiro pacto com os partidos, assinado um ano antes, teria feito da nossa democracia uma democracia abertamente tutelada. Assim, mesmo tendo de esperar pela revisão de 1982 para, finalmente, acabar com a influência directa dos militares na vida política, foi possível viver (quase) normalmente nos primeiros seis anos de governos constitucionais. Estes dois Conversas à Quinta estão também disponíveis em Podcast.
Mas se este conjunto de ensaios e entrevistas permitem perceber melhor as condições em que a nossa Constituição nasceu e os debates que sempre a rodearam, durante o período em que decorreu o projecto do Observador Nova Constituição, Miguel Pinheiro andou a ler os diários da Assembleia Constituinte, assim como os jornais daquele tempo, e escreveu um conjunto bastante alargado de pequenas notas históricas onde se recordam episódios desse ano de todas as paixões, bem como o papel desempenhado por alguns jovens políticos e juristas, alguns ainda bem presentes na cena pública, outros já desaparecidos. Eis algumas das suas melhores histórias:
Os deputados do Frou Frou, sobre as traquinices de um
constituinte de 26 anos chamado Marcelo Rebelo de Sousa;
A máquina de fazer Constituições, sobre Jorge Miranda,
alguém que retrata como “o pai, o avô, o tio e o irmão mais velho da
Constituição”:
O professor universitário que usava luvas de boxe,
onde se recorda a verve de um tal Vital Moreira, figura que ninguém conhecia
antes desse ano de debates acalorados;
O deputado que queria destruir a Constituinte, que
lembra Américo Duarte, o operário que a UDP conseguiu eleger e se destacou por
algumas das tiradas mais ferozes daquele período;
As bocas da Constituinte: “Cala-te, ó florista!”, um texto
que não é para si "se tem menos de 18 anos e o sistema de controlo
parental do seu computador está desactivado: é que as sessões da Constituinte
não eram cá para meninos"; Ela era a caneta da Constituinte, um texto que recorda
alguém que “Ouvia e escrevia, ouvia e escrevia”: “Tinha 18 anos e nenhuma
formação política, mas era uma das responsáveis por anotar tudo o que diziam os
deputados (sim, até coisas que eles gostariam de esquecer)”.
Há mais histórias para explorar, histórias de um outro tempo mas que têm mais do que um interesse anedótico: são também histórias de como se escreveu a nossa Constituição. Uma Constituição que amanhã, sábado, faz 40 anos. E sobre a qual, como não podia deixar de ser, também preparámos um Explicador: Há um problema com a nossa Constituição?