domingo, 21 de setembro de 2025

Afonso de Albuquerque

Se houve injustiças na Índia de Afonso de Albuquerque, não foi por sua culpa, porque “nunca consentiu que os seus homens oprimissem” os naturais.
(P. Gonçalo Portocarrero de Almada)

Afonso de Albuquerque (1453-1515) passou à História com o cognome de terrível, que é também o título de uma sua recente biografia, de que é autor José Manuel Garcia. Porém, uma tal alcunha não deve levar a esquecer que foi, sem exagero, uma das figuras maiores da nossa História e que, pelos seus feitos, bem merecia receber a honra de ser trasladado para o Panteão Nacional, que ficaria dignificado por uma tão ilustre presença, decerto mais honrosa do que a de outros que, sem méritos análogos, aí jazem indevidamente.
A sua vida, que não cabe no muito limitado espaço de uma crónica, foi narrada, com evidente admiração, pela historiadora francesa Elaine Sanceau (Editora Civilização, Barcelos 1983). Que uma investigadora estrangeira dedique um seu estudo a um vulto da nossa História é prova da sua importância, não apenas nacional, mas mundial. Também por esta justíssima razão, Fernando Pessoa, na Mensagem, não esqueceu Afonso de Albuquerque, precisamente porque a sua bravura moldou, de algum modo, a alma portuguesa. Bom seria que também hoje os alunos das nossas escolas conhecessem a vida deste e de outros heróis pátrios, porque os seus feitos e grandeza, mais do que pretexto para estéreis vaidades nacionalistas ou ridículas supremacias étnicas, deve ser estímulo para a virtude que fez grandes e exemplares aqueles nossos egrégios avós, que tanto contribuíram para a glória de Portugal.

A história de Afonso de Albuquerque começa com um drama que o precedeu e que predeterminou o seu nome familiar. Com efeito, por linha de varonia, era bisneto de Gonçalo Lourenço de Gomide, 1º Senhor de Vila Verde dos Francos, que foi casado com Inês Leitão, sendo pais de João Gonçalves de Gomide, 2º Senhor de Vila Verde dos Francos, Alcaide-mór de Óbidos e Escrivão da Puridade de D. João I, ou seja, uma espécie de chefe de gabinete, ou secretário, do primeiro monarca da dinastia de Aviz.

Este João Gonçalves de Gomide matou sua mulher, Leonor de Albuquerque, sendo posteriormente degolado. Por este motivo, a sua descendência, nomeadamente o pai de Afonso, trocaram o Gomide da sua ascendência paterna pelo apelido de sua mãe, em homenagem à vítima de tão horrível crime e manifesto repúdio, não apenas do ominoso assassino, mas também do seu nome e família que, entretanto, se extinguiram. Se um tal crime não tivesse acontecido, hoje, em vez de se celebrar Afonso de Albuquerque, festejar-se-ia Afonso de Gomide …

A malograda avó paterna do famoso Governador da Índia, Leonor de Albuquerque, era filha de Gonçalo Vaz de Melo, Senhor de Castanheira, e de Isabel de Albuquerque, a qual descendia, por varonia de sua mãe, Teresa de Albuquerque, de um filho bastardo de el-Rei D. Dinis, que casou com D. Teresa Martins de Menezes, 5ª Senhora de Albuquerque, que, por sua mãe, era neta do Rei Sancho IV de Castela e, por varonia, terceira neta de Afonso Teles, 1º Senhor de Albuquerque, e de sua mulher Teresa Sanches, filha de el-Rei D. Sancho I. Acrescente-se ainda que a infeliz Leonor de Albuquerque era irmã de Teresa de Albuquerque, mãe de Catarina de Albuquerque, que casou com Nuno da Cunha, sendo pais de Tristão da Cunha, que conviveu com seu primo Afonso de Albuquerque – suas avós eram irmãs – e descobriu, no hemisfério sul, as ilhas que têm o seu nome.

Apesar de terrível, Afonso de Albuquerque foi, na insuspeita opinião de Elaine Sanceau, um excelente governante, pois, “entre os indígenas de Goa, a opinião era unânime. Adoravam-no como raras vezes se adora um conquistador. Governava-os com justiça rigorosa, cuidava do seu bem-estar, socorria-lhes os pobres e nunca consentiu que os seus homens os oprimissem.” Se é verdade que nos descobrimentos portugueses houve, como é óbvio, excessos, também é certo que muitos vultos dessa epopeia se destacaram pela sua humanidade, tendo pautado a sua actuação pelos princípios da moral cristã. E, portanto, se houve injustiças na Índia de Afonso de Albuquerque, não foi decerto por sua culpa, porque “nunca consentiu que os seus homens oprimissem” os naturais, o que não quer dizer, como é óbvio, que não tenha havido, mais por via de excepção do que por regra, injustiças, mas sem o seu conhecimento, nem consentimento.

A este propósito, Elaine Sanceau narra um episódio, decerto comovedor, da humanidade de Afonso de Albuquerque: “Conta-se que na ocasião em que naufragou a Frol de la Mar, uma rapariguinha assustada, filha de uma cativa, se lhe agarrou à mão. Os prisioneiros de guerra de qualquer idade ou sexo eram apenas parte da presa a dividir entre os vencedores e a vender depois como escravos. Em desastres no mar, deixavam-nos sempre ir ao fundo ou salvar-se a nado. Mas Albuquerque ergueu a pequena nos braços e aí a conservou. De todos os ricos despojos de Malaca, foi esta criança a única coisa que salvou do naufrágio.”

Não se pense, contudo, que esta sua enternecedora solicitude para com aquela criança, que logrou salvar de uma morte certa, foi um caso único porque, como governante, sempre manifestou predilecção pelos mais novos, sobretudo se desvalidos. É ainda a historiadora francesa quem dá conta de que Albuquerque, “em Goa, reuniu todas as crianças órfãs de pai e enjeitadas que havia na cidade – Gaspar Correia declara que eram muitas, na sua maioria órfãs de portugueses falecidos – e instituiu um fundo para as sustentar. Alimentavam-nas e vestiam-nas, e as que já tinham idade para isso aprendiam a ler e a escrever e a recitar o catecismo, e mais tarde forneciam-lhes os meios de ganharem a vida. Todas as multas impostas por diversos delitos revertiam para essa boa obra, bem como parte do valor das presas tomadas no mar. Uma quota de dotação das capelas construídas por Albuquerque após o regresso do mar Vermelho foi também reservada para esta obra de caridade. Quaisquer saldos que houvesse das despesas da igreja tinham de ser entregues ao fundo dos órfãos.”

Também no seu testamento, apesar de não ter morrido rico, não esqueceu os mais novos: deixou legados a sua afilhada Ximena Gomes, uma rapariga indígena, e a um tal Álvaro, filho de um mouro de Goa, “morto per justiça”, que “eu cryey de meu moço pequeno”.

Afonso de Albuquerque não foi apenas grande na glória, mas também na desventura. Não obstante os seus inegáveis méritos e a sua inexcedível dedicação ao Rei e à pátria, nem aquele, nem esta souberam reconhecer e retribuir os seus feitos. Morre a bordo da nau que o leva, por última vez, a Goa, onde já desembarca cadáver. Esgotadas as suas forças até ao extremo do heroísmo, soube então que tinha sido destituído do seu cargo.

Nas últimas palavras do grande Afonso de Albuquerque, que bem podiam ser o seu epitáfio, há alguma tristeza, devida à ingratidão do seu monarca e de alguns dos seus subalternos, embora prevaleça a atitude cristã de quem perdoa os seus inimigos e é consciente de que não foi em vão o sacrifício da sua vida, por ter sempre servido, em primeiro lugar, a Deus: “mal ante elle [el-Rei] por amor dos homens, e mal com os homens por amor d’elle [el-Rei], compreme acolher à igreja.” Como resposta à injustiça humana, a Afonso de Albuquerque só lhe resta o justo juízo de Deus, que é misericordioso, e compensa e supera as ingratidões humanas.

Afonso de Albuquerque jaz nas dependências da Igreja da Graça, numa sepultura armoriada em que, curiosamente, em vez de constarem as armas dos Albuquerques, cujo nome usou e tanto engrandeceu, foram esculpidas as armas dos Gomides, da sua ascendência paterna, como que numa derradeira tentativa de expiar e redimir a criminosa memória do avô homicida.

Portugal deve a Afonso de Albuquerque o reconhecimento de quanto fez pelo nosso país e império. Embora ele já não careça desse tributo, é justo e necessário que lhe seja dada a honra de jazer no Panteão Nacional.