Ao contrário do que estava previsto, o golpe de Estado de 25 de Abril não trouxe uma solução política para o problema do ultramar. Uma solução política pressupunha o envolvimento das populações num processo de participação e decisão. Não foi isso que aconteceu. O golpe de Estado determinou, ao contrário, uma solução militar, isto é, a resolução do problema ultramarino através de um simples entendimento entre as chefias militares portuguesas e as chefias dos partidos armados – nas quais, significativamente, também pesavam cada vez mais os líderes operacionais, em prejuízo dos políticos. A razão para tal desfecho esteve no modo como o golpe de Estado provocou a desagregação do dispositivo militar português no ultramar.
Ao contrário do que diz a lenda, a perspectiva de um “colapso militar” no ultramar não foi a causa do 25 de Abril, mas a sua consequência. Há muitas explicações para isso. Spínola ainda tomou a sério a “solução política”. Costa Gomes, em Maio, em Angola, explicou que a guerra continuaria, caso os partidos independentistas não desarmassem. O MFA não deve ter gostado. Os capitães não podiam permitir que se regressasse à guerra, porque isso poderia restabelecer a hierarquia militar e pôr em causa a ascendência do MFA nas forças armadas. Tentaram assim confrontar Spínola com factos consumados no ultramar.
Na Guiné, logo a 26 de Abril, houve um golpe de quartel, com a prisão do comandante-chefe. Poucas semanas depois, a única força de combate disciplinada que havia na Guiné era o PAIGC. Nada mais se pôde fazer senão a sua vontade. No terreno, tanto como as manobras dos capitães, pesou a falta de objectivos de uma força que tinha sido mobilizada para uma missão, a de defender a integridade da pátria, a qual viu subitamente terminada, sem que lhe tivesse sido atribuída outra missão.
A partir de Julho de 1974 era claro que o caminho seria a independência, de uma maneira ou outra. Quem é que, a partir de então, quis ser o último soldado a morrer no ultramar? Na metrópole, entretanto, a agitação contra a guerra crescera. Para continuar as operações, teria sido necessário restabelecer um constrangimento da actividade política que já ninguém, por essas razões, estaria disposto a aceitar. E depois, como seria possível continuar a guerra com os líderes dos partidos da esquerda no governo? A guerra tinha de acabar.
No Verão de 1974, quando se aperceberam de que já não havia vontade de combater no exército português, alguns dos partidos armados resolveram jogar duro. Unidades militares mais ou menos subvertidas e desmotivadas eram uma presa fácil. Em Moçambique, o exército português teve, nos quatro meses que se seguiram ao 25 de Abril, o dobro dos mortos registados nos primeiros quatro meses de 1974. Em Angola, entre Maio e Agosto de 1974, morreram mais soldados portugueses do que durante todo o ano de 1973. Foi só então que verdadeiramente se levantou a perspectiva de uma espécie de “colapso militar”. A partir daí, a preocupação dos comandos militares portugueses foi retirar rapidamente, para evitar uma “desonra”. Era preciso parar a guerra – e só se poderia parar a guerra através de um entendimento com aqueles que a faziam. Por pouco que os partidos armados representassem, representavam as armas que os militares portugueses precisavam de sossegar. Para quê falar com mais alguém?
O grande terror dos comandos militares, em 1974, era alguma independência “rodesiana”, que criasse uma situação de confronto em que, até por mero instinto de solidariedade étnica, as tropas metropolitanas se vissem obrigadas a pôr-se ao lado da população branca contra os partidos armados. Com dureza, impediram os colonos brancos de se manifestarem. O ressentimento entre as forças armadas e as populações europeias do ultramar era antigo.
Ao contrário do que acontecera na Argélia, os civis portugueses do ultramar, depois do assalto da UPA em 1961, mantiveram-se longe da guerra. Viram-na como uma tarefa das forças armadas, e quando foram atingidos outra vez – como esporadicamente aconteceu em Moçambique, em Janeiro de 1974 – culparam os militares. A verdade é que no exército português poucos tentaram imitar os militares franceses que se revoltaram ao lado dos colonos na Argélia. O sentimento dominante parecia ser a pressa em partir, que logo contagiou os colonos. Aqui jogou também o facto de os colonos portugueses serem, na sua maioria, de primeira geração. Quase todos os colonos tinham um país para onde regressar, ao contrário do que acontecia aos Boéres na África do Sul.
Pelo seu lado, os militares desinteressaram-se de processos de transição que só poderiam ser garantidos pela força, como as eleições multipartidárias, e apostaram tudo num simples trespasse do poder para os partidos armados. Suspeitou-se depois que o tivessem feito por opção ideológica. Provavelmente, a ideologia veio depois, para justificar o expediente. Tal como o esforço de guerra precisara da cobertura do integracionismo, a retirada precisou da justificação do internacionalismo revolucionário.
Os capitães do MFA não eram simplesmente “cobardes” ou “traidores” ao serviço da União Soviética, como depois insistiram os últimos ultramarinistas. Entre eles, havia vários heróis da guerra. Ora, o acto da entrega negou tudo aquilo que os tinha motivado em doze anos de esforço militar. Mais ainda: desmentiu a promessa do 25 de Abril de que o golpe desse dia representava uma libertação para todos os que viviam debaixo da administração portuguesa, não só na Europa, como em África. Pior: como se viu depois, entregou os soldados africanos do exército português às mais horrorosas perseguições.
Para tudo isto, os homens do MFA precisaram de razões, de razões que não apenas explicassem, mas justificassem e legitimassem. O major Melo Antunes, o homem do MFA mais comprometido nas negociações da “descolonização” em 1974, quando teve de se defender, invocou a necessidade: uma vez que não se podia continuar a guerra, não havia alternativa. Mas desde quando é que a simples consciência da fatalidade gerou, naqueles que foram agentes dessa fatalidade, uma boa consciência? Só a mitologia da esquerda podia dar uma boa consciência aos homens do MFA. Só à esquerda seria possível imaginar as ditaduras sanguinárias e corruptas do PAIGC, do MPLA ou da FRELIMO como uma “libertação”, ou chamar “descolonização” à ocupação de Angola por um exército expedicionário cubano.
Para serem capazes de ver liberdade no despotismo, os capitães e os majores fizeram-se de esquerda: e nessa conversão, deram à esquerda em Portugal, durante dois anos, uma força e uma influência a que a esquerda nunca se atrevera a aspirar.
Só ultimamente se começou a perceber o verdadeiro sentido da retirada portuguesa. Havia mais africanos a combater do lado português do que do lado dos partidos armados: 42% dos efectivos do exército português em 1973, ou cerca de 61 mil militares, eram de recrutamento local. Este número não incluía as unidades de segunda linha, como as milícias locais.
Na Guiné, metade dos confrontos com o PAIGC eram da responsabilidade dessas milícias. Spínola prometera-lhes a construção de uma sociedade civil africana, pluralista e livre, contra o Estado revolucionário de tipo soviético previsto pelo PAIGC. É provável que uma ditadura como a portuguesa não fosse o sistema mais credível para patrocinar tal projecto. Também é provável que tudo tenha começado tarde demais. De qualquer modo, em 1974, a guerra em África já não era simplesmente uma guerra colonial, entre portugueses e independentistas, mas uma guerra civil entre africanos, com participação portuguesa – o que o eurocentrismo (e, em certos casos, os preconceitos raciais) dos “anticolonialistas” impediu de perceber. Só os portugueses podiam escolher entre ficar e partir. Escolheram partir. Os outros tiveram de ficar. A guerra, para eles, continuou. (Rui Ramos in “Perceber a História”)