Trinta oficiais são detidos na Trafaria e o grosso das tropas é recambiado para Sta. Margarida. O "golpe das Caldas" falhara, mas serviu para testar as fracas defesas do regime e para acelerar a revolução. A partir de agora o Movimento das Forças Armadas tinha um motivo crescido para actuar - libertar os seus camaradas presos a 16 de Março. A história começa mesmo à meia-noite, quando dois homens se defrontam com uma pistola na mão no gabinete do comandante do Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha. Virgílio Varela, um jovem capitão ligado ao MFA mantém-se firme, olhos nos olhos, em frente ao segundo-comandante do regimento. É seguido por dois camaradas, Silva Carvalho e Rocha Neves, que têm a missão de neutralizar o comando da unidade.
Lá fora, na parada, há movimentação de tropas. Uma coluna prepara-se para sair com a missão de ocupar o aeroporto de Lisboa. É suposto que outros quartéis do país já estejam a caminho da capital para fazer a revolução e os oficiais das Caldas impacientam-se. A tensão no gabinete do comandante dura pouco tempo. "Ó Varela, tenha calma, vamos lá conversar", diz o segundo-comandante. Mas os jovens oficiais estão decididos. O comandante, que fora colocado na véspera naquela unidade com o objectivo de acalmar os ânimos dos seus militares, é acordado e fica também detido.
Às quatro da manhã uma coluna formada por vários camiões de transporte de tropas, jeeps, Unimogues e Berliets, parte para Lisboa. É comandada pelo Major Armando Ramos, que viera de Lisboa com a Ordem de Operações, directamente de uma reunião com Otelo Saraiva de Carvalho, Manuel Monge e Casanova Ferreira.
No seu livro "Alvorada em Abril", o mentor do 25 de Abril conta que sentiu "uma onda de desconforto e insegurança" quando, apressadamente, improvisaram a revolução para 16 de Março só porque em Lamego as tropas se tinham rebelado e havia a vontade de várias unidades marcharem sobre Lisboa.
"O capitão Ramos rabiscou estas instruções num papel e despedindo-se de nós, emocionado, arrancou imediatamente para as Caldas da Rainha. Assim, simplesmente. Sem uma única instrução de coordenação, sem outro meio de comunicação que não fosse o número de telefone do Manuel Monge", escreve Otelo.
Na coluna rebelde a viagem decorreu sem incidentes. "íamos a 40 Km/hora, que era a velocidade possível para uma coluna militar com estas características. Eu estava convencido que éramos os últimos a caminho de Lisboa. Todos diziam que íamos atrasados", conta Silva Carvalho,
A três quilómetros da praça das portagens (na altura em Sacavém), os majores Manuel Monge e Casanova Ferreira esperam os seus camaradas num Mini e comunicam-lhes que devem voltar para trás. Afinal Lamego não saíra. Otelo tinha ido ao quartel de Mafra, mas não conseguiu fazer sair as tropas, depois de também ter tentado, sem êxito, movimentar as de Vendas Novas. E Monge e Casanova não conseguiram convencer o comandante de Cavalaria 7, em Lisboa, a embarcar na aventura. O golpe falhara. Os oficiais das Caldas nem queriam acreditar. A cidade estava indefesa e podiam ter continuado sem problemas. "Não havia mais ninguém. Nem a GNR lá estava na portagem. Quando já estávamos a regressar às Caldas é que nos cruzamos em Vila Franca com uma coluna da GNR que, supostamente, ia tentar impedir-nos de entrar em Lisboa", conta Silva Carvalho.
Mas as ordens dos oficiais do Movimento são para se cumprir. Os majores Monge e Casanova assumem o comando e vão também para as Caldas ficando do lado dos revoltosos até à rendição do quartel.
"Calculámos que já não havia grandes possibilidades de êxito, mas isso não queria dizer que não tentassemos aguentar o dia todo à espera que o país ainda mexesse, pois havia a esperança de que ainda saíssem mais uma ou duas unidades", explica Manuel Monge.
Armando Ramos também não queria regressar e conta que tencionava, no aeroporto, mandar montar segurança a dois aviões para, caso a coisa desse para o torto, fugirem todos "para a Suécia ou para outro país qualquer".
Silva Carvalho corrobora a possibilidade de fuga, por todos recusada. "Tivemos oportunidade de fugir antes de sermos cercados. De Lamego disseram-nos que fôssemos ter com eles, que iam esperar-nos à Mealhada. Mas, é claro, preferimos ficar. Depois fomos cercados pelo RI 15 de Tomar, pelo RI 7 de Leiria, pela Escola Prática de Cavalaria de Santarém, pela Polícia Móvel, GNR e PIDE".
Sem luz, nem água, nem telefones, os militares preparam a defesa do quartel. O comandante de cerco, Brigadeiro Serrano, ameaça abrir fogo. "Estávamos à vontade porque sabíamos que não havia perigo nenhum. Havia entre eles [tropas de cerco] alguns oficiais que eram dos nossos. Prolongamos as conversações com vista a ganhar tempo para que os jornais se apercebessem, para podermos publicitar ao máximo a acção. Aquilo tinha de ser sabido" (Silva Carvalho).
Após horas de tensão, a rendição dá-se pelas 17h00. Os oficiais são detidos na biblioteca e sargentos e praças são encaminhados para o refeitório. O brigadeiro prega um valente e exaltado sermão aos rebeldes. Silva Carvalho tomou, então, nota das suas palavras: "Congratulo-me pela maneira como se renderam pois se assim não tem acontecido não teria qualquer hesitação em bombardear o quartel. Lamento que numa unidade pela qual tinha um apreço especial, se tenha passado um caso destes. Espero que os senhores reflictam na insensatez do acto e saibam suportar as consequências".
Os mais comprometidos com o Movimento foram para a Trafaria e a maioria dos militares do RI5 foram transferidos para Sta. Margarida. Alberto Campos, na altura alferes miliciano e tesoureiro do quartel, conta que, dias depois, quando veio às Caldas entregar a chave do cofre e fazer as contas, não havia ninguém conhecido no quartel. "Tinham substituído o pessoal todo", conta. "Na Trafaria passou-me pela cabeça que podia estar muito tempo preso e que o Movimento podia ter sofrido um sério revés", conta Manuel Monge. Mas o facto de só eles terem sido presos, dava-lhes segurança de que os seus camaradas acabariam por os tirar de lá. O regime cometera um erro crasso: como medida de retaliação, espalhou diversos oficiais suspeitos pelo país, o que só fez alastrar o "vírus" da revolução pelos quartéis.
A "malta das Caldas" não teve que esperar muito pela libertação. Quarenta dias depois, a 25 de Abril de 1974, eram libertados da Trafaria, mas para ir logo para o teatro de operações, onde chefiaram missões de grande responsabilidade.
Do ponto de vista militar, o 16 de Março foi um teste à prontidão do regime e dos revoltosos para o confronto que se seguiria no mês seguinte. Do ponto de vista político o "golpe das Caldas" tornou o 25 de Abril irreversível. Medeiros Ferreira diz que foi depois das Caldas que houve consenso entre os militares que para alterar a política colonial era preciso alterar o regime.
O 16 de Março foi injustamente esquecido pela História? Medeiros Ferreira é claro: "Foi tão importante o 16 de Março para o 25 de Abril, como o foi o 31 de Janeiro para a República".