Em Portugal as espécies não evoluem,
circulam. Ou mais correctamente dizendo, hoje estão num grupo, amanhã regressam
àquele em que estiveram anteriormente e em cada uma dessas passagens retornam
ao que já foram como se nunca o tivessem deixado de ser. Vivem o presente sem
passado. Dessa grande circulação das espécies entre o último semestre de 2015 e
o momento presente temos a destacar os seguinte mutantes. Ou reincarnados numa
perspectiva mais teológica:
- Os amigos do Sócrates. Eram aos milhares. Todos lhe telefonavam. Todos o
abraçavam. Contavam-nos as graças – e tudo nele tinha graça! –
reverenciavam-no, achavam que com ele o PS era imbatível. […] Dos membros dos
seus governos jamais vinha uma palavra de discordância em relação ao
primeiro-ministro.
- Os esfomeados, os indignados e os desistentes. Entre 2011 e 2015 estava um em cada esquina. Aliás a
fome estava por todo o lado. Se o desemprego baixava era porque os desistentes
já nem procuravam trabalho pois não se conseguiam arrastar, mergulhados na
depressão e falta de vitaminas. Diante de cada microfone estava um indignado.
- O jornalista ofegante. O pobre não aguentava mais. Era a
passada forte a acompanhar as manifestações dos esfomeados, os acampamentos dos
indignados, o olhar faiscante do senhor Nogueira. Os directos minuto a minuto
sempre à espera que fosse aquele o dia da invasão do parlamento, da queda do
governo. A denúncia ininterrupta das negociações dos bastidores.
Certamente por conselho do seu
pneumologista o jornalista ofegantemente indignado transfigurou-se no
jornalista ora venerando e obrigado ora militante. Nada o perturba.
- Os dirigentes do PSD que acham que este partido deve
ser uma sucursal do PS.
Não há futuro mais risonho que integrar este grupo. Qualquer líder do PSD que
tenha sofrido nessa qualidade uma forte derrota ou que tenha conduzido o seu
partido à irrelevância torna-se uma figura incontornável, um poço de saber e,
claro, um comentador de referência. Se a par disso reconhecer a
superioridade do líder do PS em funções face a quem lhe sucedeu na liderança do
PSD (invariavelmente uma pessoa sem ideias, alma e consciência social)
então está no Olimpo mediático.
Podem até acontecer milagres. Por
exemplo, Manuela Ferreira Leite, pessoa que como sabe era “a velha” quando
debatia com Sócrates, o qual claramente a esmagava nos debates nomeadamente
naqueles em que a dita velha lhe perguntava face ao anúncio de estrambólicos
investimentos “Onde é que está o dinheiro?”, tornou-se uma comentadora
consensual quando, já derrotada, passou a ocupar boa parte das suas
intervenções a criticar Passos Coelho. Não só nunca mais foi ridicularizada
como, pasme-se, deixou de ser velha!
- Espécie recentemente descoberta. A Austrália tem o ornitorrinco, […] Nós para lá dos
ovos dos dinossauros na Lourinhã e do menino do Lapedo que pôs os arqueólogos
literalmente à chapada por causa dos cruzamentos entre o Crô-Magnon e o Homo
sapiens neandertalensis não tínhamos nada de relevante até que apareceu o
presidente do povo. O
presidente do povo é um ser que nasceu nas televisões, viveu nelas e prolonga o
seu mandato nelas. Correcto seria chamar-lhe presidente dos directos
televisivos mas como as televisões tendem a confundir o povo com as audiências,
o presidente do povo é a expressão vulgarizada. […]
A evolução do nosso endémico
“presidente do povo” é por enquanto um enigma mas o ecossistema à sua volta
começa a apresentar sinais de forte degradação. (in Da circulação
das espécies por Helena Matos )