Num artigo Bring the Counter-Revolution, no City Journal, Christopher Rufo, o autor de America’s Cultural Revolution: how the radical left conquered everything, historia o longo processo através do qual a Esquerda norte-americana conquistou, no nosso tempo, o poder cultural nos Estados Unidos. Uma conquista que, para o autor, foi feita passo a passo, no último meio século e que se foi consolidando, ao ritmo leninista dos dois passos em frente, um atrás, apesar das derrotas políticas infligidas à Esquerda por Nixon, por Reagan e por Trump.
Porque é o povo, a comunidade dos cidadãos votantes, que resiste a esse poder – poder que se vê no triunfo da correcção ideológica LGBT+, na hegemonia e sucesso do discurso intimidatório do Black Lives Matter ou na marginalização da meritocracia na selecção de governantes e responsáveis americanos, perante a obsessão de preencher cargos públicos com quotas de representantes de minorias culturais, sexuais e raciais.
Nixon 1968Rufo recorda que esta agenda da Nova Esquerda é a que foi imaginada e ensaiada na segunda metade dos anos 60, simbolicamente em 1968 – ano do Maio parisiense, ano que é também o da segunda New Left inglesa. Essa Agenda, na época, obedeceu a preocupações políticas circunstanciais – explorar as vulnerabilidades da sociedade norte-americana a braços com a guerra do Vietname e com o problema racial; mas procurou também responder a questões de fundo, como a perda de atracção, nas democracias ocidentais e entre os trabalhadores”, do “socialismo real” soviético.
Daqui resultou, no terreno, uma evolução para uma democratização e decadência do movimento comunista na Europa, com uma correspondente radicalização armada de grupúsculos terroristas – Brigadas Vermelhas na Itália, Baader-Meinhof na Alemanha– e uma galáxia de partidos maoistas, reencarnando todas as heresias e desviacionismos do tipo trotskista, banidos pela linha geral soviética.
Por outro lado, foi aproveitada a onda de popularidade recebida de Paris, e houve um revival dos “marxismos imaginários” (a expressão é de Raymond Aron), ou seja, de uma leitura dita nova e original de Marx.
Na América, esta agenda da New Left marcou ou ia marcar o tempo até aos nossos dias, ditando padrões da “nova moralidade”, os padrões que hoje dominam “a ideologia, a narrativa e a estética dos movimentos da esquerda social”, ainda que “degradados pelo cinismo e pela recorrência temática”.
Daí, para Rufo, a necessidade da “contra-revolução”, uma contra-revolução intelectual que na América retire o poder à Nova Esquerda, ou melhor, à sua ideologia. E isto não apenas no domínio do debate político, mas em profundidade, indo à filosofia, às ideias, base das orientações políticas e sociais. Rufo, que vem de uma família comunista italo-americana, invoca como um dos pais-fundadores desta contra-revolução Richard Nixon que, nesse mesmo ano de 68, ganharia a presidência norte-americana apelando, no meio da agitação radical, para a maioria silenciosa – “the quiet majority of Americans, the forgotten Americans, the non-shouters, the non-demonstrators”. Esta maioria dos Americanos “brancos e negros, nascidos na América ou no estrangeiro”, representava – insistia o candidato republicano – “a voz real da América”.
Nixon foi um político especialmente odiado pela corporação jornalística progressista; era um realista em política externa que deu passos de extrema ousadia para alguém da direita americana, como o reconhecimento da China de Pequim. Por outro lado, internamente, percebeu as regras do jogo e apelou ao povo ameri-cano, em nome dos princípios da Revolução americana, contra a “revolução” da New Left.
Nixon percebera que o inimigo principal da América era a coligação entre radicais brancos da classe média estudantil, que faziam barulho e fugiam à tropa, e radicais negros do Black Power, que punham bombas e assassinavam polícias. E daí veio a política de “lei e ordem” com que, uma vez eleito, respondeu aos grupos terroristas ou subversivos como os Black Panthers, ou os Weather Underground. Estes movimentos clandestinos ou semi-clandestinos foram combatidos e controlados durante a Administração Nixon.
A vitória de Ronald Reagan, em Novembro de 1980, foi também o resultado da “contra-revolução” intelectual, promovida pelas fundações e think-tanks nacional-conservadores, como a Heritage Foundation de Ed Feulner e o American Enterprise Institute; mas foi, acima de tudo, consequência da percepção popular da decadência dos Estados Unidos e de que os EUA podiam perder a Guerra Fria para a União Soviética.
Esta reacção nas Administrações Reagan-Bush 41 acabaria por levar, sem confrontação e dentro dum quadro de Détente, a uma espécie de vertigem suicidária da direcção soviética de Gorbachov; as reformas do Secretário-Geral retiraram do sistema soviético, interna e externamente, isto é, no interior da URSS e na área do Pacto de Varsóvia, o factor medo, precipitando a queda dos regimes comunistas.
Uma década antes desse fim, na segunda metade dos anos 70, depois do Watergate e do abandono do Vietname em 1975 e, na mesma época, da passagem dos Estados saídos da descolonização portuguesa para a esfera da URSS, parecia ser a América e o Ocidente quem estava em crise e à beira da derrota. Enquanto, apesar de análises críticas como a de Emmanuel Todd sobre os males intrínsecos da URSS, o país e o sistema soviético estavam, na expressão de Stephen Kotkin “letargicamente estáveis”.
O sucesso da Nova Esquerda
Mas antes do “colapso soviético” já aparecera a Nova Esquerda nos anos 60, que acabaria por ser uma tentativa, com sucesso, de a Esquerda encontrar um caminho possível entre o “socialismo real” soviético, identificado com os horrores do Estalinismo e o Estado policial e que já não seduzia muita gente e a deriva “burguesa” do trabalhismo e da social-democracia.
Com sucesso, os neo-esquerdistas convenceram a opinião pública que o Estalinismo tinha sido um desvio radical do marxismo-leninismo e uma traição ao Proletariado. Convenceram também que os seus ideais permaneciam como tal – ideais – e que a experiência soviética e chinesa não passava de ilusões, de corrupções autocráticas do verdadeiro e autêntico marxismo, que permanecia puro, na terra das utopias.
A lista destes marxistas libertários “ocidentais” é longa, desde a Escola de Frankfurt aos italianos Gramsci e Antonio Negri, a Louis Althüsser e Herbert Marcuse e às as novas “leituras” de Marx.
As interpretações alternativas e “heréticas” de Marx em relação à Vulgata soviética estavam desde sempre legitimadas pelo próprio Pai Fundador da doutrina que, em nota revelada pelo seu amigo, coautor e mecenas, Friedrich Engels, escrevera “tudo o que sei é que eu não sou marxista” – “Alles was ich weiss ist dass ich kein Marxist bin.”
Mas além de uma hermenêutica para os devotos, as várias derivas marxistas, neomarxistas e pós-marxistas, tiveram a extraordinária virtude de desligar os princípios ideológicos do Marxismo das experiências marxistas reais – que houve algumas longas, como a soviética, a chinesa, a cubana e a norte-coreana. Do mesmo modo, a agenda New Left dos anos 60, embora neutralizada no plano político e de ordem pública, isto é, sem qualquer apoio eleitoral e popular para fazer a revolução, conseguiu impor-se progressivamente no plano cultural e ideológico.
Rufo, no seu livro, traça o perfil intelectual e descreve a ideologia de uma série de autores – com Althusser à cabeça, mas também os americanos Derrick Bell e Kimberlé Crenshaw, os inventores da Critical Race Theory em nome da qual, a seguir ao assassinato de George Floyd, a esquerda radical pegou fogo à América e pôs em causa meio século de integração; assim como o sociólogo brasileiro Paulo Freire, autor de Pedagogy of the Opressed e uma longa lista de divulgadores pós-marxistas que foram aplicando a tudo ou quase tudo o binómio explorador-explorado, ao mesmo tempo que impunham, por via das receitas gramscianas e da Escola de Frankfurt, uma dialéctica de novas e permanentes contradições e explorações, desenvolvendo simultaneamente catecismos de correcção e incorrecção política.
Estes, numa altura em que começam a encontrar resistência no mundo euro-americano, estão a vir para cá, com a pompa e circunstância de grandes descobertas e conquistas culturais; vêm com a Esquerda radical, apoiada pela Esquerda oficial a quem não deixam de dar algum jeito, obcecada na sua ocupação do Estado e tranquila, por enquanto, com as “linhas vermelhas” que impôs aos seus inimigos oficiais e que estes parecem ter aceitado.