Um político de sucesso é aquele que consegue resumir a sua passagem pelo poder numa única frase. Não é preciso uma dissertação em dez volumes, nem um livro de 800 páginas, nem um discurso de duas horas — isso fica para aqueles políticos que têm necessidade de se justificar ou de se desculpar. Para os que realmente sabiam o que se esperava deles, basta uma frase que ilumine aquilo que orgulhosamente fizeram ou aquilo que evitaram que tragicamente fosse feito.
Depois da revolução, tivemos três Presidentes que, concordemos entusiasticamente com eles ou discordemos furiosamente deles, passam o teste da frase única.
A frase que define Ramalho Eanes é esta: “Devolveu as Forças Armadas aos quartéis sem golpes de Estado nem pronunciamentos militares”. Ao contrário do que nos parece hoje em dia, em que nos habituámos a viver numa reconfortante normalidade democrática, não foi fácil e não foi simples. Depois do processo revolucionário e depois das primeiras eleições livres, alguns militares de ego inchado acharam que a Pátria não podia sobreviver sem a sua orientação e o seu conselho. Por isso, berravam e esperneavam sempre que algum político sugeria que a sua influência política tinha passado a fronteira que separa a virtude do vício. Em algumas alturas, Ramalho Eanes defendeu estes personagens que se julgavam tutores do regime, cedendo ao corporativismo e às fidelidades pessoais. Mas, nos momentos decisivos, usou a sua indiscutível autoridade nos quartéis para colocar os tanques na garagem.
A frase que define Mário Soares é esta: “Estabeleceu a elasticidade e as fronteiras dos poderes de um Presidente da República”. O fundador do PS não foi apenas o primeiro Presidente civil da democracia — o que, só por si, já seria um feito. Foi, acima de tudo, o primeiro Presidente com uma ideia de missão e de destino. Mário Soares sabia o que queria e, detalhe igualmente importante, sabia o que não queria. Tentou alargar ao máximo constitucional os poderes presidenciais: dissolveu, vetou, pressionou e, com gozo e perfídia, conspirou. Mas soube parar antes de atingir os limites do regime: conviveu com um primeiro-ministro que odiava, assistiu à impotência do partido que fundou e reconheceu as fronteiras do cargo que ocupava. A dada altura, Mário Soares deixou-se consumir pela noção de uma derrota histórica perante o cavaquismo, mas, inegavelmente, terminou o seu mandato com dignidade.
A frase que define Cavaco Silva é esta: “Permitiu que o governo que foi forçado a aplicar o programa da troika para evitar a bancarrota cumprisse a sua missão até ao fim”. Muitos Presidentes entram para a História por causa daquilo que fazem. Mas, muitas vezes, mais importante do que isso é aquilo que os Presidentes não fazem. E Cavaco Silva não despediu o governo de Passos Coelho, mesmo em momentos em que isso pareceria popular ou pareceu inevitável. Se, em 2011, Cavaco tivesse sido derrotado nas eleições presidenciais por Manuel Alegre, dificilmente o país teria terminado o programa da troika — hoje seríamos, talvez, uma Argentina europeia, submersos num populismo nacionalista trágico para nós e cómico para os outros. É verdade que Cavaco Silva não travou a tempo José Sócrates como, retrospetivamente, pareceria obrigatório. Mas por uma boa razão: o institucionalismo levou-o a suportar o insuportável.
Da lista de Presidentes democraticamente eleitos, sobram dois que não se descrevem numa frase única. Jorge Sampaio foi uma figura etérea, embrulhada numa retórica vazia, sem foco nem propósito. Entra para a História por um terrível erro de cálculo: despediu Santana Lopes, mas logo a seguir deu posse a José Sócrates. Como diria alguém, quando julgava que se estava a benzer, estava afinal a partir o nariz. O dele e o nosso.
E há, finalmente, Marcelo Rebelo de Sousa. Quis ser o “Presidente do consenso”, o “Presidente da pacificação” e o “Presidente dos afetos”. Mas acabou por ser, acima de tudo, o valet de chambre de um primeiro-ministro que o forçou a encolher os poderes presidenciais que Mário Soares tinha ampliado.
Não há uma frase única que defina a passagem pelo poder de Marcelo Rebelo de Sousa. A não ser, talvez, aquela que ele próprio usou há dias num comício para emigrantes no Canadá: “We are bacalhau”.
Como se costuma dizer, as coisas são como são.