As coisas não estão a correr nada bem, mas não foi agora que começaram a correr mal e não podemos repetir o erro de pensar que é calando as críticas que avançamos. Os números para Portugal são neste momento dos piores do mundo desenvolvido no que se refere a infecções registadas (como se prova no gráfico abaixo) e o número de mortos começa a ser alarmante. Estamos com metade dos mortos da Alemanha, que tem uma população oito vezes maior, e a Suécia – a famosa Suécia –, um país com a mesma população que Portugal e que também enfrenta uma segunda vaga de contaminação (3 a 4 mil novos casos por dia), o número mais elevado de mortes que registou foi 13 (dados até dia 6 de Novembro). Pior: nalgumas regiões do país, sobretudo no Norte, a taxa de contaminados por 100 mil habitantes é tão elevada que é difícil prever quando se conseguirá dominar a doença.
Vou ser franco e directo: olhando para os números e ouvindo o que têm dito os especialistas, a minha sensação é que a situação está fora de controle, as medidas que têm vindo a ser tomadas pecam sempre por tardias, atabalhoadas, atamancadas mesmo, e que são incompletas, para além de que já estamos a cruzar linhas vermelhas, apesar de ninguém o assumir. Ou poucos o assumirem.
As linhas vermelhas de que
falo é já haver médicos
a escolher que doentes tratam, algo que foi revelado ao Observador pelo médico
intensivista dos hospital Pedro Hispano Gustavo Carona, que fala de hospitais a
trabalhar a 200%, 300%. Surpreendidos? Eu não. Quando na segunda-feira soube
que a Ordem dos Médicos tinha divulgado as suas recomendações sobre como
escolher quem tratar percebi o que vinha a caminho. E o que estava a caminho for anunciado
dias antes por João Gouveia, presidente da comissão nacional da resposta em
Medicina Intensiva à Covid-19, que também numa entrevista à rádio Observador
disse que já estávamos “a passar a linha vermelha e que só esperava “não
chegar a uma triagem de catástrofe”. Para quem não se lembra, essa foi
a triagem que teve de ser feita nos hospitais da Lombardia durante a primeira e
catastrófica vaga da doença. A triagem que deixava a morrer quem nem se tentava
sequer salvar.
Mas entretanto os dias foram
passando e basta projectar no futuro próximo a consequência do número de
infectados que estamos a registar hoje para perceber que “em
15 dias vamos ter 125 doentes por dia em Unidades de Cuidados Intensivos”,
como referiu o pneumologista António Diniz, membro equipa criada pela Ordem dos
Médicos para dar apoio à Direção-Geral de Saúde.
Isto é o que está no nosso
horizonte próximo, e aquilo que o nosso Governo decidiu foram medidas menos
drásticas que as tomadas em países com situações muito menos graves, como a
Alemanha ou o Reino Unido, para já não falar da Irlanda. Costuma-se dizer que
em política o mal – ou o que é impopular – deve ser feito depressa e todo de
uma vez. Exactamente o contrário do que tem vindo a acontecer. Medidas a
conta-gotas, discurso contraditório, necessidade constante de corrigir o tiro
(recordo os mercados
de levante, recordo as
compras durante o recolher obrigatório, recordo o apoio
aos restaurantes que só apareceu depois dos protestos, mas podia fazer
uma lista bem mais longa). Isto para além de umiscurso no limite do risível,
como o apelo da ministra da Cultura para que portugueses
vão a espetáculos numa altura destas.
O primeiro-ministro, como
sempre, acha que a
responsabilidade é das pessoas – ele nunca é responsável por nada – e
até se diz “muito surpreendido” com o que se está a passar, garantindo que a
capacidade do SNS está controlada. “Por agora”, acrescenta, mesmo quando o “por
agora” já passou por assistir
a uma desgraça no hospital de Penafiel e atabalhoadamente atirar com
parte do problema para Amarante, criando um surto num hospital que não estava preparado.
Não é verdade senhor
primeiro-ministro. A primeira responsabilidade é sua e é sua desde Março. Há
muita coisa que correu mal desde o princípio e só a cegueira e a propaganda têm
impedido um maior escrutínio e, sobretudo e mais importante, uma correcção de
rumo.
O primeiro erro foi achar que
tínhamos o melhor SNS do mundo, ou quase, e que por isso estávamos
preparadíssimos. Era mentira, é mentira. Basta pensar no seguinte: uma doença
como a Covid exige capacidade hospitalar, porque exige separar estes doentes
dos outros. O tempo de recuperação é maior. Logo o número de camas nos
hospitais é crítico.
Ora Portugal tinha um baixo
número de camas hospitalares do SNS: apenas 2,25 por 1.000 habitantes. A média da União Europeia é
5,39. Mais do dobro. Mas atenção: quando falo de SNS falo das camas no Serviço
Nacional de Saúde, que serão cerca de 24.000. Mas se pensasse em Sistema
Nacional de Saúde e incluísse o sector privado e social, podia acrescentar mais
11.300 camas. Ou seja, quase um terço das camas hospitalares em Portugal não
estão no sacrossanto SNS público.
Qual foi o dogma — o dogma
criminoso — da ministra desde o minuto zero da pandemia? Desconsiderar o sector
privado e social. Desta forma desconsiderou um terço da capacidade instalada em
camas hospitalares. Que não tinham de ser para doentes Covid – podiam ser para
outros doentes transferidos dos hospitais públicos de forma a abrir vagas para
os doentes Covid. Tão simples como isso.
A pandemia chegou a Portugal
em Março. Estamos em Novembro. Até agora não houve nenhuma conversa séria do
Ministério com os operadores privados para programar o que quer que seja. Neste
momento os privados
nem sequer conhecem os planos da DGS para a Covid. O preconceito
ideológico criou esta situação. A colaboração que já existe no Norte do país
passa no essencial à margem do Ministério e da ARS: espantosamente é combinada
directamente entre hospitais públicos aflitos e grupos privados que ainda não
sabem como vão ser pagos.
Isto não é responsabilidade
dos portugueses, senhor primeiro-ministro: é sua, que manteve à frente da Saúde
porventura a mais incompetente ministra que por lá passou desde o 25 de Abril.
E quando agora se fala que os cuidados intensivos só aguentam mais uns dias é
estultícia vir prometer que para o ano teremos o dobro de
Ora criar camas de
Para além de que um
intensivista leva anos a formar, eles não nascem do chão como cogumelos, por
muitas conferências de imprensa que Marta Temido dê (sempre com poucas
perguntas dos jornalistas, que é agora a nova regra).
Mas há pior senhor
primeiro-ministro, e isso é sua responsabilidade: o regresso às 35 horas tornou
mais difícil a vida dos hospitais e mais complicado contratar enfermeiros. Os
médicos que fogem do SNS, ou que já não acreditam no SNS, ou os que já não veem
futuro no SNS, desacreditaram no sistema porque é impossível tornar atractivas
carreiras quando tudo é centralizado, quando o mérito vale pouco, quando as
promessas ficam sempre por cumprir, quando, quando, quando… Não nos venha com
números que são areia para os olhos – verifique antes quantos concursos ficam
desertos, quantos hospitais não conseguem contratar quem procuram, e não faça
de conta que o problema é sempre dos outros.
E depois, por fim, que
confiança podemos ter em timoneiros que parecem andar às cegas, quando nem
sabemos se nas cartas de marear têm as coordenadas certas? Perdi as contas às
vezes que protestei pela pouca qualidade da informação que a Direcção-Geral de
Saúde fornecia, mas é espantoso como ela
tem conseguido piorar ao longo do tempo em vez de melhorar. É escandaloso
– repeti-o até me doer a voz – que até aos cientistas e às Universidades fosse
sonegado acesso à informação essencial, às bases de dados, que numa altura não
crítica não se mobilizassem todos os recursos para estudar a doença e procurar
compreender o que se estava a passar. Descobre-se agora que o estado de
desconchavo da Administração Pública é tal que uma
das poucas bases de dados que foi fornecida incluía homens grávidos, uma
pessoa com 134 anos e dela tinham desaparecido mais de 4.000 casos.
O natural seria que desde o
início da pandemia existisse um gabinete de crise, que houvesse cientistas
conhecidos e reconhecidos responsáveis por aconselhar o governo e por comunicar
ciência. Mas não. Tudo ficou por conta das inenarráveis conferências de
imprensa e, para efeitos de propaganda, inventaram-se as reuniões do Infarmed,
até que as coisas começaram as complicar-se. Nessa altura deixaram de
interessar e silenciaram-se os cientistas.
No meio deste nevoeiro o
primeiro-ministro diz-se agora “surpreendido” por uma “segunda vaga” que quase
todos tinham anunciado, que começara antes noutros países e que em Portugal se
desenvolve sem grandes barreiras, pois aquilo para que alguns tinham avisado –
que não houvera nenhum “milagre português”, apenas um feliz conjunto de
coincidências – nunca foi levado a sério pelas autoridades, que passaram o
Verão sem prepararem devidamente o que aí vinha.
Sabemos agora, por exemplo,
que as estruturas
de apoio de retaguarda já funcionam. É espantoso. Antes de tudo
começar já sabíamos que além de o nosso SNS ter poucas camas, também tinha
períodos de internamento demasiado longos – uma média de 9 dias. Porquê?
Essencialmente porque os hospitais se substituem muitas vezes à Segurança
Social e ficam com idosos que deviam ter alta mas não têm a quem os entregar. É
um problema antigo. É um problema que podia ter sido antecipado durante o Verão
para libertar camas nos hospitais para a “segunda vaga”. Mas não. Chegámos a
Novembro, o céu caiu-nos em cima da cabeça, e agora lá anunciam que já há as
tais estruturas de apoio. Porque só agora? E porquê tão poucas?
Não poderia o senhor
primeiro-ministro ter posto a sua ministra da Saúde a falar com a sua ministra
da Segurança Social? É assim tão difícil?
Deve ser. Mais fácil é quando
a população tem medo e fica em casa. É certo que isso tem um custo – associado
às consultas, aos exames e às operações que têm ficado por fazer, tudo tem
contribuído para um brutal aumento da mortalidade. Os mortos “não-Covid” de que
ninguém fala, que não são notícia a
não ser de quando em quando, mas que já serão quase 6.000.
E resulta. O medo resulta.
Este gráfico que encontrei aqui mostra que doentes graves já começaram outra vez
a deixar de ir às urgências. Muitos irão directos para as morgues. Nunca serão
portanto um problema político.
Fig 2
Como já
notei, até 22 de Setembro só seis dos 21 países da OCDE tinham registado
até um excesso de mortalidade superior ao nosso e todos eles por efeito do
Covid. Em Portugal a explicação era outra. Agora, com a mortalidade Covid a
juntar-se à mortalidade não-Covid, podemos ter pela frente o pior de dois
mundos.
E não, senhor
primeiro-ministro, a culpa não é dos portugueses.