quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Da verdadeira luta de classes em Portugal

Sim, é verdade. Existe uma verdadeira luta de classes em Portugal e estas estão perfeitamente identificadas e diferenciadas. Só que o conflito já não opõe os capitalistas aos proletários até porque estes últimos se encontram dos dois lados da barricada e já não têm, como outrora, interesses comuns. A luta é entre o Estado e os que dele dependem e os contribuintes.
De um lado temos os que vivem à sombra do Estado. Arrumaram-se à mesa do orçamento e exercem o poder sob diversas formas. O Estado serve-lhes de título de legitimidade para explorarem a outra classe, ou seja, os pagantes de impostos, taxas e multas. Mais que nunca é actual a figura do Zé Povinho esmagado por tributos do nosso imortal Rafael Bordalo Pinheiro. O poder exercido pelos que beneficiam dos impostos é imenso e tem diversas formas. Reflecte-se no autoritarismo político do Governo, designadamente se alicerçado numa maioria absoluta, na inépcia dos seus membros na maioria incompetentes e munidos de curricula intrujões, no mais descarado e arrogante nepotismo, no despesismo e na incúria na prestação de serviços públicos tornada possível por um regime que obviamente não responsabiliza os dirigentes de nomeação partidária pelos medíocres resultados obtidos. Assim se premeia a incompetência e se reforça a influência no Estado.

Fica assim claro que de um lado está o Estado, sector político, administrativo e empresarial incluídos, e do outro a grande massa dos cidadãos contribuintes. A ideologia de justificação já não é a religião salvífica nem a «Pátria» como no tempo do Salazar mas o interesse público mediante o qual o Estado quer convencer os cidadãos que a sua contribuição tributária é em prol do bem comum e, em última análise, no próprio interesse deles. O circo mediático totalmente controlado ajuda.

A classe dominante, ou seja, o Estado tem interesses próprios e muito claros; explorar o contribuinte e exercer o poder por intermédio dos seus dirigentes em boa hora nomeados pelas suas inúmeras qualidades cívicas e intelectuais, evidentemente, quais novos sábios platónicos.

Ao chamar a atenção para esta realidade não se pretende denegrir a maioria dos funcionários públicos, entendida em sentido lato, que fazem o que podem e dão exemplos de sincera dedicação à causa pública. Mas o mesmo não se verifica com os dirigentes políticos, com os «empresariais» e com os administrativos. São estes que têm o poder de decisão e este está cada vez mais concentrado. São eles que exercem o poder e dele dispõem como de uma coutada, assaltando os contribuintes sem tréguas e sem quaisquer sinais de contenção em benefício dos seus privilégios de classe, servidos quentinhos através do orçamento e beneficiando de todas as vantagens do poder. Há situações que roçam o crime por omissão. São eles os verdadeiros senhores do nosso país.

Fica assim claro que o Estado é um bolo muito apetecível. É por essa razão que os partidos dominantes o querem conquistar. E mais, querem que o partido se sobreponha ao Estado de modo a transformar o poder estatal em poder partidário. Não custa a compreender. Neste aspecto, ironia do destino, até parece que Marx tinha razão ao dizer que o Estado é um instrumento da luta de classes, só que as classes não são as que Marx pensava.

Claro que os partidos maioritários estão do lado da classe dominante. E mais, são a classe dominante. Atingiu-se até hoje em dia o ponto mais alto na nossa história recente na identificação de um partido político com o Estado. A realidade mexicana mostrou-nos durante décadas as consequências da sobreposição do Estado e do Partido Revolucionário Institucional. Os partidos maioritários são no nosso país um exemplo claro de situacionismo na pior acepção do termo.

Não há alternativas. O PSD está cheio de pressa para fazer o mesmo que faz hoje o PS em nome do tal interesse público. Nada garante que a classe dominante fosse apeada. Só os seus dirigentes é que (em parte) mudariam.

Não tenham ilusões. A modificação desta aviltante situação só se fará com uma profunda alteração da cultura política dominante em prol de uma nova República alicerçada em valores democráticos e liberais, legitimada não apenas pelo sufrágio mas por uma vida democrática muito mais exigente e participativa e, sobretudo, por uma Sociedade Civil forte e independente, coisa em que os actuais partidos dominantes nem querem ouvir falar. É coisa para demorar muito tempo, pelo menos o de uma geração. Até lá continuaremos a assistir ao espectáculo da luta dos partidos dominantes pelo monopólio do chamado interesse público enquanto vão enchendo os bolsos à custa do contribuinte e assegurando uma velhice descansada para os respectivos dirigentes em nome daquele famigerado interesse, evidentemente.  (in Luis Cabral de Moncada in Da verdadeira luta de Classes em Portugal” )