Trinta e cinco anos depois os antigos inimigos vão encontrar-se na Guiné, a propósito de um simpósio internacional sobre o Guiledje, que vai pôr portugueses, guineenses e combatentes de outras nacionalidades a debater o episódio que marcou a mais violenta guerra do Ultramar.Devido à sua importância estratégica, a região do Guiledje, no Sul da Guiné-Bissau, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, foi desde o início da guerra uma das mais disputadas. Aí se travaram alguns dos combates mais sangrentos.Em Maio de 1973, as tropas do PAIGC lançaram uma grande ofensiva militar contra o aquartelamento português do Guiledje.
Ao fim de cinco dias de bombardeamento, o comandante Coutinho e Lima – contrariando ordens expressas do comandante-chefe e governador da Guiné, general António de Spínola – manda evacuar o quartel. Cerca de seiscentas pessoas, entre militares e civis, fogem para Gadameal, outra guarnição portuguesa ali próxima, com as tropas do PAIGC, comandadas por Nino Vieira, no seu encalço. O cerco a Gadamael Porto dura vários dias, mas as tropas portuguesas resistem, muito por acção dos reforços enviados por Spínola, sob a liderança do capitão Manuel Monge.A posição de Guiledje nunca mais foi recuperada pelos portugueses. O episódio foi um ponto de viragem na guerra. A vitória militar tornou-se uma miragem para os portugueses e Spínola tentou, em vão, convencer Marcelo Caetano a negociar a paz com o PAIGC. Só o 25 de Abril de 1974 e a consequente retirada salvou as Forças Armadas portuguesas de uma derrota militar.
Luís Graça, antigo furriel miliciano que combateu na Guiné, lançou em 2005 um blogue que junta testemunhos de ex-combatentes dos dois lados do conflito. O autor vai participar no simpósio sobre o Guiledje: “É um momento bonito. Não vamos celebrar a derrota de ninguém mas antes a vitória de dois povos”.
O furriel miliciano de Operações Especiais, José Casimiro CaLrvalho, desenhou para o blogue de Luís Graça um croqui do quartel de Guiledje antes de ser atacado.
SIMPÓSIO HISTÓRICO EM BISSAU
Começa no próximo dia 29 o Simpósio Internacional sobre o Guiledje, a decorrer na Guiné-Bissau até ao dia 7 de Março. O programa inclui visitas aos locais onde portugueses e guineenses combateram, seguidos de cinco dias de debates na Assembleia Nacional, em Bissau. Além de ex-combatentes de Portugal e da Guiné, destaca-se a participação de delegações de Cuba e de Cabo Verde, dois países que também participaram na guerra.
CUBA EXPLICA A SUA PARTICIPAÇÃO NA GUERRA
Óscar Aramas, antigo embaixador de Cuba na Guiné-Conacri vai a Bissau explicar a contribuição do país de Fidel Castro para a luta armada do PAIGC contra os portugueses.
ESTIMULAR O TURISMO DA SAUDADE
Carlos Schwartz quer pôr Guiledje e a região de Cantanhez nas roteiros de férias dos portugueses que passaram os melhores anos da sua juventude na Guiné-Bissau.
ONG QUER RECONSTRUIR QUARTEL DE GUILEDJE
Os violentos combates e o abandono a que o sítio foi votado depois da guerra deixaram o quartel de Guiledje em ruína. A ONG AD quer fazer ali um museu e uma escola."AS PAZES JÁ ESTÃO FEITAS" (Carlos Schwartz, Organizador do simpósio)Correio da Manhã – Como surgiu a ideia de fazer o simpósio sobre Guiledje?– Carlos Schwartz – A nossa ONG (a AD – Acção para o Desenvolvimento) trabalha há 16 anos na região de Guiledje e cedo nos apercebemos de que o desenvolvimento deve passar pela componente histórica e cultural. Pretendemos fazer uma ponte entre o passado e o futuro, reerguendo o quartel do Guiledje para aí instalar um núcleo museológico e uma escola para os jovens.– É também um pretexto para reaproximar os antigos inimigos? – Um dos nossos objectivos é promover o reencontro dos protagonistas da guerra – portugueses, guineenses, cabo-verdianos e cubanos. A própria comunidade local quer rever os portugueses com que viveram. Os guineenses nunca guardaram rancor ao povo português e há um desejo de reencontro. As pazes já estão feitas.
HISTÓRIAS DRAMÁTICASO QUARTEL DOS MORTOS VIVOS
João António Tunes, alferes miliciano de Transmissões, conta a história do tenente aviador Aparício, o único piloto que aceitava aterrar o Dornier em Guiledje. Era um homem alegre , mas voltava sempre carrancudo quando aterrava naquela pista. “Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guiledje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam (...) Os militares em Guiledje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.
”ENCONTRO DE DOIS AMIGOS COM FARDAS DESAVINDAS
Mário Dias, comando português, fez a instrução militar com o guineense Domingos Ramos e ficaram grandes amigos. Domingos desertou para o PAIGC. Um dia, encontraram-se em plena selva: “De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto ergueu-se também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos. Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tenha entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei. Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens: “Nó bai, nó bai”. E desapareceu na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo: “– Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.” CM Segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2008