domingo, 14 de dezembro de 2025

um Pais dual...

“Despe o colete ‘jaune ou rouge’ e lê, com olhos de ler e cabeça de ver!”

Portugal é um país curioso. Não tanto pela sua história — que é rica — mas pela sua capacidade quase artística de fingir que não vê o que está mesmo à frente dos olhos. E um dos exemplos mais acabados dessa cegueira voluntária é o chamado “país dual” em que vivemos.
A cada greve, o ritual repete-se com a precisão de um relógio suíço: o sector público faz greve contra legislação que… não se lhe aplica. O sector privado, esse, continua a trabalhar, a adaptar-se, a contornar a paralisação e, quando pode, a pagar a factura. Complicado? Não. Hipócrita? Bastante.
A narrativa oficial chama-lhe “defesa dos trabalhadores”. Na realidade, trata-se sobretudo da defesa dos trabalhadores certos — os que já estão dentro. Os outros, os que ainda não entraram, que esperem. Ou que emigrem. Ou que se calem.
O exemplo da saúde é particularmente elucidativo, quase pedagógico. O sector privado da saúde sobrevive, em boa medida, graças a trabalhadores do sector público que beneficiam do melhor seguro de saúde existente em Portugal: a ADSE. Um privilégio silencioso, raramente mencionado nos protestos, mas muito usado na prática.
Curiosamente, sempre que algum governo ousa pensar em parcerias público-privadas que permitam aos trabalhadores do sector privado aceder a hospitais privados em condições semelhantes, ergue-se imediatamente o coro da indignação. Fala-se do “nosso SNS”, da “ameaça dos privados”, do “desmantelamento do Estado social”.
O “nosso”, note-se, nunca é exactamente o deles.
Este padrão repete-se noutros domínios: trabalho, habitação, pensões. Aquilo que em Portugal se apresenta como defesa dos direitos é, demasiadas vezes, a defesa de leis, regulamentos e procedimentos que blindam quem já chegou e penalizam quem ainda vem a caminho. Uma espécie de sindicalismo de condomínio fechado, com porteiro ideológico incluído.
O resultado é um país onde a injustiça não é acidental, mas estrutural. Onde o discurso da solidariedade serve para manter privilégios adquiridos. Onde o colete — seja ele amarelo ou vermelho — substitui o pensamento. E onde ler com atenção se tornou um acto quase revolucionário.
Por isso, o convite é simples: despe o colete. Lê. Observa. Compara. E talvez descubras que o verdadeiro fosso social não está entre esquerda e direita, mas entre quem já está protegido e quem nunca chega a estar.
E isso, por muito que incomode, explica mais sobre Portugal do que mil greves televisionadas.