Bem sei que a esmola, conforme nela foi o intento e caridade, terá seu merecimento. E quem a pudesse dar a todos por amor de Deus faria bem, quando isso não fosse ocasião de pecar, ou de não deixar o pecado, que o sol a todos alumia, porém quem não pode senão limitadamente, parece a deve antes de dar ao digno, que ao indigno, quais são quase todos estes ciganos, ladrões, salteadores, matadores, sem lei, nem temor dela: e elas ladras, feiticeiras, inquietadoras da honestidade das mulheres, e fazendo-as mal parir. Embaidoras que por dois vinténs, ou dois pães, não duvidarão trazer à vossa escrava ou criada a peçonha, e o mesmo solimão para matar seus senhores e enganar a simples donzela com nome de mezinha para o outro casar com ela. E ainda à casada, a título de o marido lhe querer bem, lhe dão com que os coitados vão ao outro mundo fazer a experiência da mezinha, ou ficam para nunca mais prestar. Então a descarga disto é que digam que o marido era um amancebado e andava toda a noite, e que disso morreu assim mal.
E sabe Deus, e suas próprias mulheres o como e azadas, a quantos isto cada dia acontece. E seja verdade que todos somos pecadores, estes o são por ofício e por carta, e dele se mantém. E os que introduziram em Portugal mil feitiçarias e males, que nele não se sabiam. Por onde eu aconselharia a todo o homem que evitasse o falar qualquer coisa sua com esta gente, nem ainda zombando ou com achaque de boa dita, muito mais cautelosamente e com mais rigor que com um ferido de peste, e falo de ciência certa. E é de notar que se um nosso Português vai ser morador em outro Reino, em poucos anos logo fala a língua desse Reino, e seus filhos já nela e em tudo o mais como naturais mesmo da terra. E esta gente com haver tantos centos de anos que Espanha os agasalhou, que quase eles mesmos não sabem de que nação ou reino procedem, porque sendo Gregos que se vieram fugindo dos Turcos, se fazem Egípcios ou Gitanos. E pelo contrário, e sendo Caldeus, como diz Jacobo Filipo Bergomate no seu livro, Supplementum chronicarum, que de certos povos chamados Zíngaros se saíram a encher toda a Europa; porém que nenhuns os consentem mais de três dias, pela subtileza de seus furtos, e que por essa causa os Venezianos, e os terem por suspeitos, os lançaram de todas as suas terras, e que nunca deixaram a sua língua Caldeia, que deve ser a que lhe ouvimos falar, e parece são estes de Portugal. Os quais dos Zíngaros se chamam Ciganos, que é o mesmo. E o não perderem nunca a sua língua, não foi por certo para nela se lerem e usarem dos livros católicos, ou de ciências e artes que trouxessem boas, senão para melhor inteligência de suas más artes, latrocínios, e embelecos, ou enganos, porque usando tudo isto com usam por ofício os não possamos entender. E nós tão cegos e descuidados, que ninguém atenta nisto: falo dos que governam, que o poderão remediar, e vendo-o e palpando-o cada dia e cada hora a nossas portas e dentro de nossas próprias casas passam por isso. E não sei como os conselheiros dos Reis e os que governam as Repúblicas desvelando-se tanto em novas pragmáticas sobre ninharias, não buscam remédio a coisa tão importante como fora não estar Portugal, e Espanha toda, criando em suas entranhas estas lombrigas, ou digo víboras que o estão roendo de contínuo por todas as partes de seu todo. Agasalhando-os Portugal, vindo perseguidos dos Turcos, usam tão mal desse agasalho e benefício.
E pudera isso ter muito bom remédio, embarcando-os divididos para o Brasil e Angola e outras nossas conquistas, e agora para a nova povoação do Maranhão poucos a poucos em cada navio que fosse, e se iriam acabando de sair do reino, ou deles estes mãos costumes: e quando isso não parecesse, fazendo-os viver dentro no meio das cidades repartidos pelo Reino, vedando-lhes o uso do trajo e da linguagem, e o sair fora das cidades e vilas. O que é muito importante e mais essencial é obrigando-os a ofícios com tenda sua, ou obreiros nas alheias. E que não fossem ferreiros, que só usam a fim de fazer gazuas e instrumentos de roubar. E a elas o mesmo a ofícios, ou vender em tendas, ou pelas ruas, e outros exercícios com o que, ou outros remédios, se lhes atalhasse o furtar e outros malefícios. E o pedir esmola que aos pobres se deve necessitados (que há muitos nossos naturais) e não a eles que podem bem com trabalhar remediar sua vida. Pois a verdadeira caridade deve começar por nós mesmos e pelos mais chegados nossos.
(Miguel Leitão de Andrada in «Miscelânea», 1629)