"Mais de seis anos após os acontecimentos ocorridos no Sul de França, Theotónio Pereira relatou numa carta dirigida a Salazar o facto de Aristides de Sousa Mendes o ter procurado, diretamente e através de terceiros, de modo a interessá-lo pela revisão do processo que conduzira ao «seu afastamento do serviço», ficando, compulsivamente, a aguardar aposentação auferindo cerca de metade do salário. Mas mais do que os contactos feitos por Aristides de Sousa Mendes, ou em nome de Aristides de Sousa Mendes, ao antigo embaixador em Madrid repugnava-lhe a campanha desenvolvida na imprensa internacional no ano de 1946, nomeadamente em jornais do Brasil e dos EUA, em que se afirmava que o antigo cônsul fora «vítima da sua devoção pelos refugiados» ao mesmo tempo que se repetiam «insinuações acerca da atitude tomada nesse particular pelo Governo português». Por isso, transmitiu a Salazar, em novembro de 1946, a sua visão dos acontecimentos ocorridos em junho de 1940: 'Ao chegar a Irún foi-me dito pelo Coronel Chefe do Serviço da fronteira que a Espanha ia recusar a passagem aos refugiados. Tratava-se duma verdadeira avalanche humana que corria na frente das forças alemãs. Estas atingiriam a fronteira de um momento para o outro. Seria um facto de transcendente gravidade e um momento muito difícil para Espanha. Nenhuma obrigação tinha esta de dar asilo a multidões que fugiam tomadas de pânico e era razoável e lógico que procurasse a todo o custo evitar conflitos com o invasor da França. O interesse dos espanhóis e nosso estava justamente em conseguir que os alemães se detivessem na fronteira. Respondi que não tinha dúvida que a Espanha faria respeitar a sua fronteira, mas que não podia admitir que as autoridades espanholas se negassem a acatar os vistos de livre-trânsito para Portugal postos nos passaportes de pessoas que se dirigissem ao nosso País. Então o Coronel Ochotorena (era este o seu nome) tomou um punhado de passaportes de sobre a mesa e mostrou-lhe [sic] vários deles que não continham senão estas palavras a lápis: «visto bom para Portugal» e uma rubrica abreviada que não reconheci. Nem carimbos, nem selos, nem qualquer sinal de autenticidade. «É isto um visto a que se possa fazer fé?», perguntou. Não pude deixar de reconhecer que os seus reparos eram justificados. E acrescentou: «Como este têm aparecido muitíssimos outros. «Parece que é o seu Cônsul em Bordéus que veio instalar-se aqui na fronteira e os está dando a toda a gente.» Por último, teve uma frase que me deixou perplexo: «O Senhor Embaixador vai agora a França e terá ocasião de verificar que as notas de mil francos andam por lá nas pontas dos pés e muita gente as estará recolhendo.» Fui efetivamente a França depois de conseguir do Coronel Ochotorena a promessa formal de que os nossos vistos seriam respeitados e que a Espanha deixaria passar todas as pessoas com o seu passaporte em regra ou que fossem objeto de uma recomendação especial minha. Chamei a mim toda a responsabilidade dos serviços e declarei que permaneceria na fronteira enquanto durasse aquele transe tão difícil. A Espanha manteria assim aberta a fronteira para os refugiados que buscassem Portugal e que nas condições mais dramáticas estavam chegando à pequena cidade de Hendaia. Três dias me conservei circulando entre Bayonne e Irún até que a aproximação das forças alemãs me fez regressar definitivamente a Espanha.' Theotónio Pereira continuava o seu testemunho afirmando estar convencido de que fora a sua «presença na fronteira» que impedira que «as autoridades espanholas recusassem a passagem de refugiados». Afinal, era «compreensível o seu desejo de evitar a todo o custo motivos de descontentamento por parte dos tão incómodos como perigosos elementos que em poucas horas atingiram a fronteira dos Pirenéus pela primeira vez na sua História». Por isso, qualquer «pretexto» era bom para «deixarem» de reconhecer «os vistos portugueses», comportamento que seria muito «justamente facilitado pelo irregularíssimo procedimento do cônsul português em Bordéus». No entanto, tal não aconteceu, e todos os portadores de vistos portugueses, mesmo irregulares, entraram em Espanha, prosseguiram para Portugal e aí entraram e permaneceram até conseguirem um visto para as Américas. Por fim, Theotónio Pereira resumiu as irregularidades mais graves cometidas por Sousa Mendes. Elencou o «abandono do posto e da família» em Bordéus; a sua presença «num café» onde concedeu «vistos a todas as pessoas» que os «solicitavam, depois de lançar o pânico no consulado em Bayonne»; finalmente, e apesar de não ter na sua posse «os elementos habituais de autenticação dos vistos, lançara [com a sua atitude] a confusão e a desconfiança sobre os passaportes dos que se dirigiam a Portugal», o que fizera com que as «autoridades espanholas acusassem» os serviços consulares portugueses de «comércio de venda de vistos». De tudo isto, Theotónio Pereira extraía duas conclusões. Em primeiro lugar, que embora Aristides de Sousa Mendes fosse «culpado» dos factos apontados, os seus atos não eram senão consequência «dum verdadeiro colapso nervoso», não acreditando Theotónio Pereira que o cônsul tivesse «procedido com fins menos honestos». Era sua convicção que não tinha recebido «uma só daquelas notas de mil francos com que os fugitivos pagavam alucinadamente uma gota de gasolina, um pedaço de pão ou um metro de estrada que os colocasse mais perto da ponte internacional». Em segundo lugar, nada permitia a Aristides de Sousa Mendes «invocar os seus auxílios aos refugiados ou os serviços prestados às Nações Unidas». E porquê? Porque o «seu desvairado procedimento teria sem dúvida dado lugar a que as autoridades espanholas suspendessem ou reduzissem a passagem dos fugitivos para Portugal se o signatário destas linhas se não tivesse apresentado na fronteira franco-espanhola e chamado a si toda a responsabilidade e direção dos serviços portugueses naquela hora crítica». [Resumindo] Em finais de 1946, e aos olhos de Theotónio Pereira, Aristides de Sousa Mendes era responsável não por ter facilitado que alguns milhares de refugiados fugissem de uma Europa em guerra e em grande medida dominada pelos nazis, mas por «antipatrióticas atuações [que] através de jornais estrangeiros [...] têm atacado Portugal e o seu Governo»."