segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O PCP, a revolução, o PREC e o 25 de Novembro – o relato de quem viveu tudo por dentro!

No início de 1975, tínhamos a revolução nas mãos. Todos os dias dávamos novos passos, cada degrau ultrapassado aproximava-nos dos nossos objectivos, abrindo-se um caminho imparável para o socialismo. O mais marcante desses dias era a sensação de que, ao contrário de outros, não andávamos à deriva, ao sabor do acaso. Sabíamos exactamente o que fazer, o que queríamos e quais os nossos objectivos, e todas as nossas acções enquadravam-se numa estratégia previamente definida. Cada um no seu sector dava o melhor de si para mobilizar a respectiva organização e canalizar a luta para a torrente comum da revolução.
A UEC (União dos Estudantes Comunistas, que Zita Seabra dirigia) tinha missões difíceis e lutas complicadas, a nossa vida não era fácil. Os metalúrgicos eram alvo da minha inveja, porque, agindo como um corpo, chegavam sempre seguros a qualquer lado, respondendo de imediato a todos os apelos. Nós, na universidade, tínhamos de estar nas lutas estudantis, enfrentar as greves dos esquerdistas e ajudar a fazer funcionar as universidades, desencadeando os saneamentos que considerávamos justos e protegendo os nossos professores da vaga de saneamentos levada a cabo pelos esquerdistas. Nada era fácil, pois os alunos que deviam ter entrado para o primeiro ano estavam a fazer serviço cívico e não tinham aulas, e foram instituídas desde o ano anterior em muitas faculdades as passagens administrativas em substituição dos exames (essa «avaliação da burguesia»), que garantiam aproveitamento em cadeiras que se arrastavam há anos. «Sociais-fascistas» era o mais simpático que nos chamavam. A orientação era, pois, sanear os professores fascistas, bem como os funcionários e os assistentes, algo complexo de definir, e deixar o resto funcionar. O MRPP, pelo contrário, queria as universidades paralisadas, chegando ao ponto de sanear todos os professores em Direito e aprovar um sistema em que os alunos se auto-avaliavam. De resto, todos os motivos eram bons para combatermos entre nós, e com tal garra que a Cidade Universitária era diariamente palco de cenas de violência, com mobília partida nas cantinas universitárias, além de muitas cabeças. Contra o MRPP e todos os outros movimentos esquerdistas, trotskistas e maoístas, gastávamos muito mais tempo a combater-nos mutuamente do que a fazer qualquer outra coisa. (…)

Nos partidos comunistas nunca se dizia, e muito menos escrevia, aquilo que eram os verdadeiros objectivos políticos do Partido: era mesmo frequente ser proclamada uma coisa que todos os funcionários percebiam significar o seu contrário. Tornou-se conhecida a frase com que os dissidentes soviéticos ilustravam a aplicação prática deste comportamento: «Os comunistas lutam tanto, mas tanto, pela paz no mundo, que não deixam pedra sobre pedra»

A revolução faz-se por saltos, não é uma auto-estrada, e eu sabia isso bem. Mas a revolução estava em curso e nós só queríamos que ela prosseguisse. [O 28 de Setembro] O 11 de Março, o Verão Quente, o cerco à Constituinte, o 25 de Novembro, e tudo o mais que se passou naquele meio ano, aconteceu exactamente porque o PCP, conquistada a liberdade e a democracia, decidiu passar à revolução socialista. Para isso era essencial não deixar o país avançar para um regime democrático nem para um Estado de direito, nem para uma democracia que respeitasse os resultados eleitorais. Mário Soares foi quem melhor o entendeu e combateu, juntamente com o PPD de Sá Carneiro. Também a Igreja Católica foi decisiva, pressentindo que a liberdade religiosa corria perigo em Portugal.

Caso o PCP não tivesse decidido avançar antes das eleições para a segunda fase da revolução socialista, gerando condições para um golpe militar e civil, o Verão Quente não teria existido. Depois das eleições livres de 1975, o país teria passado naturalmente à construção de uma democracia pluripartidária, os deputados teriam elaborado a Constituição e o Verão não tinha sido «quente», nem estaríamos no PREC. Se a intenção do PCP fosse consolidar a democracia plural, tê-lo-ia feito como fez em Espanha o PCE e como se fazia na Europa democrática. (…)

Tudo o que tínhamos feito até então fora em nome do ideal, da ideologia que abraçávamos, em nome do comunismo. Agora, quase um ano depois da conquista da liberdade, prosseguíamos coerentemente a luta pelo mesmo ideal.

A nossa força aparentava ser muito maior do que era na realidade: tínhamos de fazer um esforço enorme para que não se baseasse apenas nos militantes organizados, que eram a nossa vanguarda. Era no MFA que se decidia o fundamental e o nosso sector militar procurava organizar o melhor possível os militantes comunistas nas forças armadas, que tinham de assumir-se como vanguarda do proletariado. Influenciávamos o que podíamos. Tínhamos a força organizada possível e camaradas com pouca experiência política. Mas sabíamos para onde lhes dizer que fossem, e os ideais têm muita força.

Era fundamental nacionalizar as empresas e as terras para colectivizar os meios de produção. Não há socialismo sem colectivização da terra e das fábricas, e por isso tínhamos de abolir a propriedade privada. Tínhamos de prender os capitalistas detentores desses meios de produção, evidentemente. Se não eram conspiradores, poderiam vir a sê-lo, cientificamente, a qualquer momento. E, além do mais, se se prendessem uns quantos, outros fugiam com medo e assim era mais fácil concretizar a revolução. Foi assim na mãe Rússia, com muitos russos «brancos» a fugirem para Paris.

No seguimento do 11 de Março e com as nacionalizações a decorrer, os capitalistas presos eram os detentores dos monopólios já referenciados no Rumo à Vitória. O Copcon de Otelo e a Quinta Divisão de Varela Gomes não só prenderam gente com mandado de captura em branco como levaram pessoas por engano, à pressa para resolver o assunto, por razões tão inacreditáveis como a coincidência de terem o mesmo apelido sem serem da mesma família. O objectivo era prender os Mellos, os Espíritos Santos, os Champalimauds e os demais detentores de monopólios que, associados ao imperialismo, tinham garantido a sobrevivência do regime fascista. Eram conspiradores, fascistas, capitalistas, e foram presos porque existiam. (…)

Se o PCP não procurasse chegar rapidamente à revolução socialista nunca Portugal teria vivido o Verão Quente ou ficado à beira de uma guerra civil, como aconteceu. O PCP apenas recuou quando perdeu militarmente no 25 de Novembro.

Quem ao longo de todo este período conduziu pessoalmente o processo, dando-nos orientações que seguíamos sem hesitar, foi o Partido, foi Álvaro Cunhal. Fomos derrotados nalguns importantes objectivos de luta, como na unicidade sindical, mas não perderíamos a guerra. Tudo o que o PCP fez na rua, nas fábricas e nos campos, tudo o que disse ao país, tudo o que conspirou, organizou e planeou, tudo o que votou na Constituinte foi rigorosamente determinado por Álvaro Cunhal. Éramos um exército obedecendo ao seu general.

Nunca conheci qualquer contestação dos diversos sectores do PCP – militares, UEC, intelectuais, grupo parlamentar – às linhas de orientação definidas por Álvaro Cunhal. E o PCP nunca fez nada que ele não desejasse. (…)

Por tudo o que tinha feito, Cunhal simbolizava o ideal comunista. Ele era o PCP e o PCP era ele. Não precisávamos do seu retrato nas sedes, isso era para os líderes fracos. Como uma vez me fez ver, onde ele estava, estava a presidência. Dele emanava uma atracção especial que não deixava ninguém indiferente e que vinha da sua capacidade de liderança, da sua firmeza, da sua sedução. (…)

Nos dias que se seguiram ao 25 de Abril percebeu-se imediatamente que ninguém, civil ou militar, rico, capitalista ou pobre, reaccionário ou progressista, estaria disposto a resistir ou arriscar um golpe para que o país regressasse ao regime de Salazar ou de Caetano. O povo inteiro saiu à rua em uníssono para festejar a liberdade. Assim se viu no 1.º de Maio de 1974 e nos dias que se lhe seguiram.

Todavia, enquanto esta festa unânime era uma evidência para todo o país e para o mundo, logo a partir do 1.º de Maio de 1974 o PCP empenhou-se diariamente a anunciar conspirações, golpes iminentes, contragolpes reaccionários, de civis e de militares, grandes perigos para o regime democrático. O objectivo era criar a sensação de que existiam mil armadilhas para nos fazer regressar ao fascismo. Passava-se a noção de que o perigo nos espreitava em cada dia e ao virar da esquina.

O PCP mais não fez do que cerrar fileiras para passar por via armada ao socialismo. Daí que, em vez de se construir serenamente a democracia no país, se tenha passado rapidamente ao PREC. Foi Cunhal quem utilizou pela primeira vez a expressão PREC (Processo Revolucionário em Curso), querendo dizer que a revolução não acabava depois da queda do regime fascista: continuava, estava em curso, era um processo revolucionário que só terminaria na fase seguinte. «PREC» passou a ser uma expressão generalizada para caracterizar o período compreendido entre 11 de Março e 25 de Novembro de 1975. Mas, para o PCP, o PREC não terminou em Novembro de 1975. Até Cunhal se retirar e abandonar a vida política, o processo revolucionário esteve sempre em curso.

Durante aquele período, o país, ao caminhar para um Portugal socialista, idêntico a Cuba, à Checoslováquia ou à Roménia, esteve à beira de uma guerra civil. Logo a seguir ao 1.º de Maio de 1974, o objectivo imediato do Partido foi acelerar a revolução e tomar o poder. E o PCP não estava só, embora o MRPP, o MES, o PRP, o MDP e todos os outros grupos essencialmente estudantis se calassem rapidamente caso o PCP se conformasse com um regime democrático parlamentar idêntico a qualquer outro da Europa. Só que esses regimes, aos quais chamávamos «democracias burguesas», representavam precisamente aquilo que não desejávamos para Portugal e que passámos todo este tempo a tentar impedir que se instalasse definitivamente entre nós.

No 11 de Março, o PCP contava com a forte influência, directa e organizada, do primeiro-ministro Vasco Gonçalves junto de muitos militares. Tinha mais de 350 sedes no país e mais de mil funcionários, revolucionários profissionais, controlando quase todos os sindicatos. Tinha ideias fortes e mobilizadoras, sendo a mais apelativa de todas a ideia de fazer justiça a quem toda a vida tinha sido explorado, um proletário desde sempre. Agora era a hora dos proletários, a vez de fazerem justiça pelas suas mãos, de vingarem dores, fomes e humilhações, e de construírem um mundo melhor para si e para os seus filhos.

É inegável que o ideal socialista ganhara uma tal força, uma tal popularidade, que todo o país parecia desejá-lo e assumi-lo como bandeira, de tal forma que constava dos programas político-partidários da direita à esquerda e de qualquer panfleto do MFA. Ninguém se atrevia a não ser socialista e a não defender o socialismo como meta e objectivo nacional.

Porém, era também inegável que a ideia de eleições se impunha. Os portugueses queriam votar e sonhavam com eleições livres. Mário Soares e Sá Carneiro, entre outros, assim como diversos militares do MFA, compreenderam esse grande sonho popular. A vontade de eleições era inexorável e apresentava-se como forma de travar os intentos putschistas do PCP. O intento tinha uma tal força popular, que não era possível adiá-las mais. (…)

A nossa orientação era clara: ocupar empresas nacionalizadas, ocupar empresas abandonadas pelos patrões e saneá-los, bem como às chefias reaccionárias e cúmplices com o fascismo. Muita gente no país foi acusada de legionária, colaboracionista, bufo, membro da União Nacional, sendo pura e simplesmente saneada dos empregos em plenários de empresa. Os saneamentos diários eram lidos em diversos programas da rádio e muitas listas foram publicadas em jornais diários. As listas multiplicaram-se por todo o lado: nas empresas, nas universidades, na administração pública. (…)

Álvaro Cunhal, e nós com ele, tinha um sentimento de ódio profundo para com Mário Soares, mais do que para com qualquer político de direita. Mais do que a ninguém, por ser inequivocamente um homem de esquerda. Ele fez frente ao PCP com todos os meios ao seu alcance: aliando- se aos militares mais democratas e retirando-os da nossa influência, batendo-se sempre por eleições livres, fazendo o povo sair à rua quando era necessário e aliando todas as forças políticas à sua direita, civis e militares, colocando-os todos na rua contra nós. (…)

Quando o PS ganhou as eleições para a Assembleia Constituinte, o PCP não se pôs na defensiva. Continuou como se nada tivesse acontecido em Portugal, tentando reduzir as eleições e a Constituinte a um percalço sem importância. Na véspera das eleições intensificámos todas as formas de luta em todas as frentes. Logo a seguir ao acto eleitoral, respondemos ostensivamente na ofensiva, atacando Mário Soares. Tentando mesmo humilhá-lo, para que constasse. Quando Mário Soares, com Salgado Zenha e outros dirigentes do PS, se dirigiu à tribuna do Estádio 1.º de Maio, onde decorriam as festividades e onde se comemorava o que ali tinha acontecido um ano antes, não o deixámos entrar na tribuna. Não se lhe abriu a porta. Um major do MFA, Campos Andrada, que mais tarde foi promovido, barrou-lhe o caminho. Ele não ia entrar no palco para falar no Estádio 1.º de Maio. Aquele povo era nosso, e nós precisávamos dele. Na tribuna estavam, entre outros, o Presidente da República Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, para além dos dirigentes da Intersindical. Na véspera, o governo tinha aprovado o decreto da unicidade sindical. O argumento político usado para um marinheiro, militar do MFA, próximo do PCP, barrar o acesso à tribuna do secretário-geral do PS Mário Soares e de Salgado Zenha foi que não havia ali lugar para divisionistas. Eles tinham chegado com a manifestação dos que não queriam a unicidade sindical.

Álvaro Cunhal adorava este género de acções. Programava-as ao milímetro. Serem o MFA e os trabalhadores a fechar a porta da tribuna ao Dr. Soares, a não o deixar entrar, era dos momentos que mais o divertia. Ele que era contido, e em muitos aspectos tímido, não resistia a partilhar no bar da sede e a comentar divertido com as bases e com os funcionários a cara ou o gesto do seu inimigo de estimação. Era porém uma evidência que os «divisionistas» tinham acabado de ganhar as eleições seis dias antes. Não o deixar entrar foi um gesto emblemático, simbólico e cheio de significado político. Ambos os lados o entenderam. Com este gesto, que não pôde deixar de marcar Mário Soares e que foi também inesquecível para nós comunistas, procurou demonstrar-se quem era o inimigo principal, que não nos metia qualquer medo e que não tinha lugar na festa dos trabalhadores. (…)

Enquanto o PS nos fazia frente em Lisboa, o PPD de Sá Carneiro mobilizava o Norte, juntamente com o CDS de Freitas do Amaral, para não permitir o avanço da revolução socialista. O PCP encontrou, porém, uma forma de lhes fazer frente, aliás muito típica do comunismo: o ataque pessoal a Francisco Sá Carneiro. (…)

Mário Soares, Sá Carneiro e a Igreja Católica eram os inimigos a combater, sendo o PS e o PPD os adversários directos na acção política e na batalha ideológica. Portugal era um povo maioritariamente católico, e nem a extinção das ordens religiosas nem a perseguição no tempo da República tinham resultado na diminuição da influência da Igreja.

Tentava-se que a Igreja ficasse nos templos e se limitasse ao culto sem interferir na vida política nacional. Mas a Igreja tinha a Rádio Renascença, sendo que uma das condições para a vitória da revolução era o controlo dos órgãos de comunicação social. Uns nacionalizaram-se e foram mandados para lá militantes pôr ordem na casa, como o Diário de Notícias com José Saramago, outros foram encerrados à força, como O Século, e noutros ainda seguiu-se a táctica clássica de arrancar com uma «luta dos trabalhadores contra o patronato». Assim foi no República e na Renascença. Um era afecto ao PS e o outro pertencia à Igreja Católica. Na Rádio Renascença, que era uma voz importante e muito credível no país, com enorme audiência, começou uma «justa e exclusiva» luta dos trabalhadores pelos seus direitos laborais (com um único militante do PCP, tendo a UDP feito o resto). (…)

No que diz respeito à Igreja, tínhamos de lhe fazer frente sem permitir que nos acusassem de qualquer sentimento anticlerical ou anti-religioso que pudesse impressionar o povo português. Tudo o que fizéssemos que pudesse ter essa conotação, como a ocupação da Renascença, tinha de ser feito de forma a que não se percebesse que éramos nós os responsáveis. Se havia uma questão política em que sabíamos distinguir claramente a táctica da estratégia (aplicando a conceptologia marxista), era essa. (…)

Além destas três grandes forças (Mário Soares, Sá Carneiro e a Igreja Católica), tínhamos pela frente o MRPP em particular, e muitos outros em geral, como a UDP, o PCP (M-L), a AOC, etc., alguns dos quais tinham conquistado sindicatos importantes. A AOC tinha os Químicos, o MRPP tinha a TAP, entre outros. De todos eles o MRPP era sem dúvida o mais aguerrido e violento, mas para nós eles não eram mais do que filhos da burguesia ao serviço da reacção e da CIA. A violência do MRPP contra nós agudizou-se brutalmente neste período. De ambos os lados exigia-se muita coragem para enfrentar as cenas diárias de violência. (…)

Para nós, o MRPP, onde militavam pessoas como José Manuel Durão Barroso, Margarida Sousa Uva, Saldanha Sanches ou Maria José Morgado, era a principal arma da direita reaccionária e do imperialismo da CIA (que infiltrara o movimento) usada contra nós, comunistas. Aparecia sempre para radicalizar as lutas de tal forma que virava toda a gente contra a revolução.

Se conseguíssemos continuar a concretizar os objectivos fundamentais da revolução democrática e nacional, a caminhada para o socialismo tornar-se-ia irreversível. Esta foi a tese central que durante todo o Verão Quente explicámos aos militantes. A irreversibilidade das alterações económicas verificadas, o caminho seguro para a colectivização dos principais meios de produção, a abolição da exploração do homem pelo homem, vinham criar as condições objectivas para o Portugal socialista. Depois disto competia ao Partido conseguir as condições subjectivas, isto é, a insurreição armada vitoriosa para o socialismo.

Desde que conseguíssemos colectivizar os principais meios de produção, a revolução socialista podia demorar dias ou anos, mas aconteceria seguramente. O marxismo-leninismo era uma ciência: a lei da humanidade e do seu progresso descoberta por Marx e Engels e confirmada por Lenine. (…)

Começava a ficar cada vez mais claro que a luta se ia agudizar, que se organizava com demonstrações de força, assinalando a respectiva influência militar, contando espingardas, demonstrando força nas ruas e nas manifestações.

Só com a demissão de Vasco Gonçalves de primeiro-ministro (a 30 de Agosto) e a famosa Assembleia Geral de Tancos (a 1 de Setembro), na qual foi exonerado de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e com o célebre Documento dos Nove, comecei a perceber que a situação estava a tornar-se perigosa para nós. Desde o 25 de Abril que tudo se resumia às provocações da direita reaccionária contra as forças progressistas, a aliança Povo/MFA a fortalecer-se, as grandes conquistas do processo revolucionário, tudo se repetia sempre, os pontos políticos eram sempre iguais e não era possível entender a cada momento o que se passava exactamente e qual era exactamente a verdadeira correlação de forças. Eu procurava ler a situação nos sinais que iam chegando, mas que por vezes eram brutais e inesperados, como o «Caiu o camarada Vasco!». Em dois dias perdemos o essencial do poder que nos dava segurança para a luta futura. Perdemos o camarada Vasco, a nossa «muralha de aço».

Todos nos apercebemos de que estávamos a perder terreno no próprio MFA a olhos vistos. Nem a aliança com os esquerdistas, que tanto irritou a UEC, para melhorar a correlação de forças no MFA, nem a multiplicação, nas vésperas do 25 de Novembro, de encontros secretos de Cunhal com militares – que eu saiba e tivesse ajudado a organizar, com Costa Gomes e com Otelo –, nos sossegou. Os camaradas que eu controlava começaram a desconfiar dos meus «pontos políticos», mas eu limitava-me a repetir o que me era transmitido.

Subitamente, tudo se precipitou e tudo acelerou em função, não da correlação de forças na rua, mas da estrita correlação das forças militares. Quem era fiel e a quem. De ambos os lados preparava-se o embate decisivo, determinante. Percebi-o claramente. (…)

Finalmente, a 11 de Novembro, dia da independência de Angola, o Parlamento foi cercado por ordem do sindicato da construção civil. O facto de ter sido a construção civil não foi por acaso. Era um grande sindicato que não fazia parte da Intersindical e que estava em luta, numa justa luta de um dos sectores mais explorados dos trabalhadores portugueses. Assim, não nos poderiam acusar objectivamente de promover o cerco à Constituinte. Foi porém o gesto mais simbólico que antecedeu o 25 de Novembro: cercar a Assembleia Constituinte, eleita nas primeiras eleições livres depois do 25 de Abril. (…) [Os deputados do PCP] saíram do cerco debaixo de aplausos, enquanto todos os outros saíram com apupos.x

Era evidente que nesse mês de Novembro de 1975 a revolução se iria clarificar. Ou dava um salto, ou recuava. Era impossível manter a instabilidade em que vivíamos e era evidente que estávamos em grande recuo e em grande perda de posições estratégicas. Poder-se-ia repetir outro 28 de Setembro, outro 11 de Março? Nunca como naqueles dias que antecederam o 25 de Novembro estive tão completamente consciente de que podíamos ir todos parar à cadeia se a reacção ganhasse, podíamos ser ilegalizados, e o camarada Cunhal corria o sério risco de ser preso. Avançar e já, antes que seja demasiado tarde, era a sensação daqueles dias. Pouco antes tinham sido criados os SUVs (Soldados Unidos Vencerão), para juntar aos oficiais e dar ao MFA uma maior perspectiva de classe. Mas os SUVs acabaram por só impressionar numa conferência de imprensa onde apareceram encapuzados: não eram a garantia da vitória, por muito que os soldados e marinheiros o tivessem sido noutras revoluções. Eram necessárias chefias das unidades. Desde há muito que se contabilizavam fidelidades por quartéis e por ramos das forças armadas, por chefias militares do MFA. A 24 de Novembro colocámos os estudantes da UEC nas casas previstas e eu disse-lhes que aguardassem ordens, que a situação era muito grave. Ficaram quietos à espera. Eu andei entre a sede do PCP e as casas, acompanhando com grande ansiedade o evoluir da situação militar. Mais do que as palavras, via a cara e a expressão, durante aquelas longas horas, do Carlos Brito e de Álvaro Cunhal.

A segurança estava pronta a levar o nosso secretário-geral para local seguro, connosco disponíveis para passar à clandestinidade, se perdêssemos.

Na minha perspectiva, íamos avançar nessa noite decisivamente para impedir um golpe que se preparava na direita, um golpe do Grupo dos Nove, braço do PS e da direita. Contávamos as unidades que estavam do nosso lado. Quando os pára-quedistas avançaram, na madrugada de 25, e o Ralis saiu, contámos as espingardas e as fidelidades – e a revolução socialista pareceu-me próxima. Os camaradas davam-nos confiança. O Presidente da República não era obstáculo. Era agora ou nunca. Ontem era cedo, amanhã seria tarde de mais. A organização aguardava nas casas e nos pontos previstos, e em frente à sede do PCP juntou-se uma multidão de militantes. Quando chegaram as notícias da viragem dos pára-quedistas, e do avanço dos Comandos de Jaime Neves, eu temi o pior.

Chamaram-me para receber uma informação e mandaram desmobilizar tudo e todos imediatamente, confirmando que os pára-quedistas tinham virado, que tinham passado para o outro lado, que os Comandos estavam na rua e que só a Marinha se mantinha fiel à revolução – e só com a Marinha não se podia ganhar uma revolução. Vivi momentos verdadeiramente dramáticos. Fui desmobilizar os UECs, mandá-los simplesmente para casa. Tivemos a sensação de derrota como não havíamos tido antes e sentimos que ia demorar muito tempo até voltarmos à mesma conjuntura, a outra oportunidade como aquela, que nos trouxe tão perto da vitória. Cunhal falou aos funcionários que ali estavam e disse duas coisas que gravei na memória: que teve garantias de Melo Antunes de que não ia ser preso e que o PCP não ia ser ilegalizado. E recordou a obra de Lenine, Um passo atrás, dois passos à frente, escrita nas vésperas da revolução de 1905. Íamos dar um passo atrás para no futuro podermos dar dois passos à frente.

Com a correlação de forças no terreno, não havia outro desfecho possível. A rápida saída do coronel Jaime Neves, a intervenção do general Ramalho Eanes e a determinação do Grupo dos Nove convenceram os pára-quedistas a passar para o lado deles. Explicámos aos militantes o recuo, dando o exemplo do Sudão, onde o Partido Comunista tinha promovido recentemente um golpe de Estado sem medir bem as forças e tudo se tinha transformado numa chacina de comunistas, sendo necessários muitos anos para se voltarem a recompor. Eu e muitos dos UECs ficámos furiosos com esta ordem tão rápida de recuo. Porquê desistir logo assim? Durante os dias seguintes choveram as explicações e sobretudo as contas a quantos estavam de cada lado. Não restava outro caminho. O MFA acabou e o PREC também. Fomos para casa.

Os portugueses, militares e civis, não queriam que corresse sangue, que houvesse uma guerra civil. Queriam paz e democracia e orgulhavam-se da sua revolução pacífica dos cravos. Sonhavam com cravos e não com G3. Os militares, de Eanes a Jaime Neves, de Melo Antunes a todos os outros do Grupo dos Nove, tinham feito o 25 de Abril e não tinham como modelo a revolução russa. Decididamente. Eram militares patriotas, orgulhosos de terem virado as espingardas. Muitas vezes tive a sensação de que ficavam fascinados connosco, por termos estado no terreno, termos lutado contra o regime de uma forma inquestionavelmente corajosa. Respeitavam-nos e queriam entender-nos também, para não serem apanhados novamente no lado errado. Mas quando a questão se colocou, a necessidade de nos travar o passo para impedir que Portugal caminhasse para o comunismo, muitos fizeram-no corajosamente. Mesmo Costa Gomes, que hesitava frequentemente e que era sensível às pressões que lhe fazíamos, por vezes mesmo através de recados do seu filho Francisco, não hesitou desta vez em estar do lado contrário ao nosso. Só depois de sair de presidente, e particularmente após a morte do filho, se deixou usar como bandeira de um comunismo decadente e em extinção, integrando o Conselho Mundial para a Paz. Mereceu-me porém sempre respeito pelo drama humano que viveu.

A 26 de Novembro foi dissolvido o Copcon. Foram presos cerca de duzentos militares, entre eles Varela Gomes. Era fácil entender que saneavam a nossa gente e os nossos aliados. A 27 de Novembro, Carlos Fabião e Otelo Saraiva de Carvalho foram substituídos como chefe do Estado-Maior do Exército e comandante do Copcon, sendo também pedida a sua demissão do Conselho da Revolução. Melo Antunes comunicou ao país que o Partido Comunista Português não seria ilegalizado e era mesmo indispensável. António Ramalho Eanes foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército e o PC ficou no VI Governo Provisório. A Rádio Renascença foi devolvida à Igreja.

As revoluções não se fazem por decreto, nem quando começam nem quando terminam. A revolução tinha acabado. Depois do 25 de Novembro, levámos um ano a recompor-nos do choque da derrota. Só um ano depois teve lugar o VIII Congresso do PCP, altura em que entrei para o Comité Central. A linha política deste congresso vem definida num documento de Cunhal intitulado A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro, em que se explica aos militantes que ainda estamos no processo revolucionário em curso e que as conquistas da revolução são irreversíveis. Em que se escondem ou ignoram os factos, portanto.  (Zita Seabra)