Um dos mitos do “nacionalismo moçambicano”, abundantemente traduzido em estátuas, lápides evocativas, ruas, praças e romances históricos, trata de converter o famoso Ngungunyane ou Gungunhana em líder anti-colonialista avant la lettre, um resistente à ocupação portuguesa e defensor dos “povos de Moçambique”. Tal construção mítica soçobra perante a historiografia hoje prevalecente, posto que Gungunhana não foi – não era – um libertador, mas um opressor detestado e detestável, cabeça de um império que entre 1821 e 1897 submeteu e aterrorizou um vasto território compreendido entre o actual Sul do Save e o Rio Zambeze, em Moçambique, e internando-se até território hoje pertencente ao Zimbabwe.
O Império de Gaza nasceu em resultado da invasão do Sul e Centro do actual Moçambique pelos Nguni (Angunes) – chamados Vátuas pelos portugueses - grupo de origem Zulu oriundo da África do Sul e cujo líder se desentendera com o famoso Shaka, o grande rei Zulu, deslocando-se para norte nesse movimento comummente designado por mfeme (sofrimento) que desestruturou as pacíficas sociedades agrícolas aí existentes. Sociedade organizada militarmente, os Nguni dedicavam-se à guerra de subjugação, conferindo aos derrotados a designação de Tsonga, etnónimo com conotação pejorativa que significava “escravo”, “cão” ou “sub-humano”. Os Tsonga eram, pois, constrangidos a pagar tributos em troca de protecção, mas igualmente oferecer parte da sua população masculina para trabalho escravo doméstico dos Nguni e as suas jovens para servirem de concubinas aos invasores. Esclavagistas, encaminhavam parte das suas vítimas para o litoral, vendendo-as a comerciantes árabes, franceses, britânicos, portugueses e brasileiros, guardando o restante para toda a sorte de trabalhos.
Em 1884, ao subir ao poder como rei dos Vátuas, Gungunhana deu largas a sucessivas demonstrações de agressividade sobre territórios da Coroa Portuguesa, assim como sobre os potentados locais que integravam aquilo que se designa como sistema feudal luso-africano, pelo qual as chefias africanas estabeleciam pactos de amizade, aliança e vassalidade com o Rei de Portugal.
Gungunhana submeteu pela força os chefes Mafumo, Tembe, Maotas, Magaia e Matola – na região do actual Maputo – e procurou subjugar os chefes afro-portugueses da região de Inhambane. Os ingleses viram neste chefe belicoso oportunidade para provocarem o desmoronamento da presença portuguesa. Através da British South Africa Company, dirigida por Cecil Rhodes, recebeu Gungunhana libras em ouro e armas, inchando-lhe a soberba e gestos desafiantes. Foi por pressão de Cecil Rhodes que Londres acabou por enviar a Lisboa o célebre Ultimato de 1890. No quadro de uma intensa campanha da imprensa britânica, o Gungunhana deu instruções para que as suas forças provocassem toda a sorte de escaramuças, ameaçando o porto de Lourenço Marques. Em inícios de Outubro de 1894 a cidade de Lourenço Marques sofreu um primeiro assalto, do qual resultaram 21 mortos portugueses negros e um branco.
Foi nessa emergência que o governo de Lisboa enviou a Moçambique um corpo expedicionário em que figuravam, entre outros, às ordens do Comissário António Enes, Paiva Couceiro, Freire de Andrade, Eduardo Galhardo e Mouzinho de Albuquerque.
Começava a guerra com os Vátuas que terminaria em finais de 1895 com a destruição militar do Império do Gungunhana. Habitualmente referida como uma guerra entre um exército europeu e guerreiros negros, a verdade é que o conflito entre Portugueses e Vátuas não foi uma guerra “colonial”, posto que parte importante do esforço militar português recaiu sobre tropa negra portuguesa de recrutamento local, reforçada pelos chamados Angolas – tropa negra portuguesa trazida de Angola – para além, claro de forças metropolitanas de infantaria, artilharia e cavalaria. A atestá-lo, as baixas portuguesas ocorridas durante os combates que selaram a derrota dos Vátuas. A 2 de Fevereiro de 1895, em Marracuene, o exército português sofreu 33 baixas mortais: três soldados europeus e trinta negros. Em Setembro de 1895, em Magul, o exército português dispunha de 775 militares, dos quais 500 eram africanos. Foi neste violento recontro que um feiticeiro negro, fiel ao rei de Portugal, saiu do quadrado e foi insultar, a uma distância que a voz poderia ser ouvida, as tropas do Gungunhana. Os insultos terão sido tão ofensivos que provocaram a ira dos Vátuas que de imediato se lançaram sobre o quadrado português, sendo repelidos com pesadas baixas. Ao retirarem, os Vátuas foram perseguidos pelos Angolas e tropa moçambicana portuguesa.
A posterior captura e exílio de Gungunhana foi sentida com grande alívio pelos povos submetidos, pelo que a Lourenço Marques – hoje Maputo – acorreram os régulos negros para felicitar e agradecer ao Comissário português pela vitória e restabelecimento da paz, bem como pelo fim do jugo do Gungunhana.
A. Rita–Ferreira - Presença Luso-asiática e mutações culturais no sul de Moçambique (até c. 1900). Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical/Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa,1982.
P. Harries - “Exclusion, Classification and Internal Colonialism: The Emergence of Ethnicity Among the Tsonga-Speakers of South Africa”. In LEROY, L. Vail: The Creation of Tribalism in Southern
Africa. London, James Currey, 1989.