terça-feira, 25 de novembro de 2025

Marcelo Rebelo de Sousa lembra "A carta de Bruges"

Se há figura que ainda hoje obriga a uma reflexão sobre a nossa memória é o Infante D. Pedro (1392-1449), filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, pelo contributo que deu ao advogar a necessidade de reflexão e ação planeada para responder aos desafios do tempo. Entre 1425 e 1428 viajou na Europa, pelos grandes centros – Londres, Bruges, Veneza, Roma, Alemanha, Hungria e Espanha. O contacto internacional permitiu-lhe dispor de informação atualizada, designadamente em relação às relações económicas com a Flandres. Comparando a experiência portuguesa e os dados de fora, escreveu ao irmão D. Duarte, futuro monarca, uma importante carta – a carta de Bruges (1426) – em que aponta um conjunto essencial de reformas. Em Veneza, o mais importante centro económico do século XV, visitou arsenais, recolheu informes sobre o comércio oriental, adquiriu o livro de Marco Pólo, com notícias da Rota da Seda, da China, das Índias e das suas riquezas, e, tudo leva a crer, também um mapa com o traçado das principais rotas comerciais com o Oriente.

A Carta de Bruges é notável pelo sentido modernizador e pela atitude reformista, aconselhando a presença de representantes dos três estados (clero, nobreza e povo) no Conselho e Tribunal reais: «Senhor, bem sabeis quanto presta o bom conselho que é tido e ouvido em boa ordenança; por isso me parece, Senhor, que todos vossos feitos assim… deviam ser determinados; e assim, Senhor, neste Conselho como na vossa Relação, me parece que deveis ter homens de todos os estados da vossa terra, assim cleresia, como de fidalgos e do povo, para vos aconselharem que não ordenásseis coisa contra seus proveitos nem em quebranto de seus bons privilégios.». Importaria ainda reformar a Universidade, como meio para garantir uma melhor qualidade dos quadros eclesiásticos e administrativos: «que na dita universidade houvesse dez ou mais colégios em que fossem mantidos escolares pobres; e outros ricos vivessem dentro com eles às suas próprias despesas (…) e se ordenassem estes colégios por maneira dos de Uxónia (Oxford) e Paris, e assim cresceriam os letrados e as ciências, e os senhores achariam de onde tomassem capelães honestos e entendidos… e além disto se seguiria que Vós acharíeis letrados para oficiais de Justiça; e quando alguns vos desprouvessem teríeis donde tomar outros e eles, temendo-se do que poderia acontecer, serviriam melhor e com mais diligência (…)»
Parece-me, Senhor, que a justiça tem duas partes. Uma é dar a cada um o que é seu. A outra é dar-lho sem delonga. E ainda que eu cuido que ambas em vossa terra igualmente falecem, da derradeira sou bem certo e esta faz tão grande dano em vossa terra que, em muitos feitos, aqueles que tarde vencem ficam vencidos”.

A Carta é um repositório de conselhos e constitui um verdadeiro “programa de ação”. E tem sido muito lembrada como sinal de exigência de ligar “fixação” e “transporte”, ou seja, de criar condições para produzir riqueza em ligação com o desenvolvimento do trato comercial. E a mesma preocupação se encontra no tocante à aplicação dos meios disponíveis: “bem creio, Senhor, que seis que tivessem vontade de desembargar e fossem diligentes em seu ofício fariam mais que cinquenta que tal vontade não têm”. 
Quanto aos gastos dos senhores da terra, estes fazem “tão grandes despesas que a terra o não pode suportar; e por isto se lançam preitas e outras imposições per que ela é muito gastada”. E ainda por cima, “a terra e todolos fidalgos dela” eram mal servidos, porque prevalecia a ociosidade e “nenhum se contenta de aprender o ofício que seu padre havia, nem servir outros senhores senão lançarem-se à corte em esperança de serem escudeiros del-rei, ou vossos ou de cada um de vossos irmãos”.



25 de Novembro de 1975: quando Portugal escolheu a Democracia

duas datas-siamesas, dois projectos incompatíveis
Há meio século, Portugal tomou uma decisão de que ainda não tomou plena consciência: quis ser uma democracia liberal ocidental, e não uma “democracia popular” de tipo soviético.

O 25 de Abril de 1974 abriu a porta — derrubou a ditadura, desfez o império, pôs o país em suspensão. O 25 de Novembro de 1975, menos poético e bem menos cómodo, fechou outra porta: a da sovietização lenta, do partido único disfarçado, do “poder popular” comandado a partir de comités e gabinetes. Sem o 25 de Novembro, o 25 de Abril teria acabado, muito provavelmente, num simulacro de pluralismo, com eleições coreografadas e oposição decorativa.¹
Não é por acaso que, em 2024, a Assembleia da República decidiu comemorar anualmente o 25 de Novembro em pé de igualdade com o 25 de Abril — decisão aprovada com votos da direita democrática e contra votos da esquerda que nunca digeriu a derrota do PREC.² A história política portuguesa reconheceu, ainda que tarde e a contragosto, que sem aquele “golpe contra o golpe” de 1975 não haveria Constituição de 1976, eleições livres, alternância pacífica de poder, entrada na CEE, nem muito do que hoje se toma por normalidade democrática
do PREC à encruzilhada: quando a revolução quis dispensar o voto
Entre o Verão de 1975 e Novembro, Portugal viveu numa espécie de febre alta: nacionalizações em catadupa, ocupações de terras e empresas, saneamentos, sequestros de ministros e deputados, governos paralisados, plenários em vez de cadeia de comando.³
O Processo Revolucionário em Curso já não era apenas a digestão difícil de um regime caído; era um projecto político alternativo à democracia representativa.
Alguns marcos desse desvio:
  •     11 de Março de 1975, que acelera as nacionalizações e consagra o “povo-MFA” como fórmula mágica para tudo;
  •     A 5.ª Divisão, o aparelho de propaganda revolucionária dentro das Forças Armadas;
  •     O COPCON, sob Otelo Saraiva de Carvalho, que se autonomiza como pólo de poder próprio, com mandados em branco, detenções arbitrárias e uma linguagem política de ruptura.⁴
As eleições para a Assembleia Constituinte de Abril de 1975 — as primeiras verdadeiramente livres — foram tratadas por sectores influentes do MFA como um detalhe burguês. O país real, entretanto, olhava com crescente cepticismo. O Norte reagia com terço numa mão e raiva na outra; o campo via nas ocupações uma nova forma de tutela; a classe média urbana percebia o colapso económico iminente.⁵
Chega-se ao Outono de 1975 com São Bento cercado, o Governo Provisório suspenso, as Forças Armadas profundamente divididas, e um projecto revolucionário que já não escondia a tentação de partido único.
O Grupo dos Nove, o Vasco Lourenço e o plano dos moderados
É neste ambiente que surge o Documento dos Nove, liderado por Melo Antunes, em Agosto de 1975: uma recusa frontal do “poder popular” sem sufrágio e a defesa explícita de um caminho pluralista e constitucional.⁶
Entre os signatários estava o Vasco Lourenço, cuja posição evolui decisivamente: até então próximo de Otelo e do COPCON, rompe com essa linha e alinha com os moderados. Essa mudança ganha peso decisivo quando é nomeado comandante da Região Militar de Lisboa em substituição de Otelo.⁷
Em paralelo, o plano operacional para neutralizar uma tentativa de golpe revolucionário é entregue a Ramalho Eanes, que o executa com precisão. O chamado “plano dos coronéis” — expressão mais tarde usada por vários historiadores — consistia em restaurar a cadeia de comando e impedir que forças revolucionárias assumissem controlo do aparelho de Estado.⁸
Não se tratava de instaurar uma ditadura alternativa, mas de impedir que Portugal se transformasse numa “democracia popular” de fachada.
Os Comandos: a reserva moral e operacional da democracia
Num Exército fragmentado por plenários e comités, o Regimento de Comandos da Amadora era um anacronismo. Disciplina, treino real, hierarquia, neutralidade partidária — exactamente o contrário da deriva ideológica dominante.⁹
Pouco se destaca um facto essencial: meses antes do 25 de Novembro, formou-se uma rede discreta de antigos Comandos, desmobilizados da Guerra do Ultramar, que começaram a contactar e organizar ex-militares experientes perante a ameaça de extinção do próprio Regimento. Dessa preparação nasceram duas Companhias de reserva compostas por homens que tinham pendurado a farda, mas não o dever.¹⁰
Quando, na madrugada de 25 de Novembro, pára-quedistas ocupam bases aéreas e posições estratégicas, é a prontidão dos Comandos — reforçados por esses antigos militares — que impede o controlo revolucionário de Lisboa.
O Posto de Comando da Amadora, com Ramalho Eanes a coordenar e Jaime Neves no comando táctico, dispõe exactamente daquilo que faltava à esquerda revolucionária: plano, disciplina e clareza de objectivos. A tomada de Monsanto, o controlo das antenas da Lousã, o cerco aos Lanceiros e a recusa dos Fuzileiros em seguir ordens do COPCON só foram possíveis porque os Comandos mantiveram, mesmo em 1975, a cultura operacional e a neutralidade que o resto das Forças Armadas perdera.¹¹
E convém recordar: o 25 de Novembro não foi um exercício académico. Houve mortos. A guerra civil foi evitada por minutos.¹² 
Melo Antunes, o PCP e a opção pelo pluralismo
Outro aspecto frequentemente distorcido: o PCP não foi nem seria ilegalizado.
Pelo contrário: na tarde de 26 de Novembro, é o próprio Melo Antunes que declara, na televisão, que o PCP era “indispensável para a democracia portuguesa”, rejeitando qualquer purga.¹³
O que se derrota não é a existência do PCP, mas a sua estratégia de instrumentalizar sectores armados das Forças Armadas para forçar uma transição para o socialismo de tipo soviético. A historiografia recente descreve mesmo uma espécie de acordo táctico, em que a retirada dos militantes armados permite ao partido permanecer no sistema democrático.¹⁴
O próprio Ramalho Eanes enfatizará mais tarde que os moderados actuaram para impedir a vitória de qualquer extremo — e para permitir que todos os partidos, incluindo o PCP, existissem em regime de pluralismo efectivo.¹⁵
Assim, paradoxalmente, o 25 de Novembro salvou o PCP: evitou que o partido ficasse associado a um golpe falhado e empurrado para a clandestinidade.


25 de Novembro: acto fundador da democracia liberal
O 25 de Novembro produz quatro efeitos estruturantes:
  • Fim efectivo do PREC e transição para o processo constitucional que culmina na Constituição de 1976.¹⁶
  • Reforço da autoridade presidencial e do Conselho da Revolução como garantes da normalização institucional.¹⁷
  • Reinstitucionalização das Forças Armadas, recuperando a neutralidade partidária.
  • Definição do lugar de Portugal no Ocidente, abrindo caminho à adesão à CEE em 1986.¹⁸
Sem 25 de Novembro, Portugal dificilmente seria hoje uma democracia liberal com alternância de poder, economia de mercado, liberdade de imprensa e pluralismo efectivo. .
..."a coragem das minorias responsáveis":
O 25 de Novembro ensina uma lição essencial: nem sempre a liberdade é defendida por maiorias entusiasmadas; muitas vezes é salvaguardada por minorias disciplinadas e responsáveis.
Naquele Novembro de 1975, enquanto uns sonhavam com sovietes à beira-Tejo e outros conspiravam para aproveitar o caos, houve quem escolhesse o caminho difícil: 
usar a força mínima necessária para restaurar a autoridade democrática e impedir a transformação de Portugal numa democracia popular alinhada com Moscovo.
É tempo de o dizer sem rodeios:
  • O 25 de Abril abriu a porta da liberdade.
  • O 25 de Novembro impediu que ela fosse trancada por dentro.
  • A democracia liberal portuguesa nasce da convergência destas duas datas.
Meio século depois, lembrar o 25 de Novembro é lembrar que a liberdade exige vigilância, coragem e, quando não há alternativa, determinação armada contra quem tenta capturar o destino de todos em nome de alguns.

Notas de Fim
1. Ver análise histórica completa: Blog ReVisões, “25 de Novembro: fim do PREC”, e literatura historiográfica recente sobre o papel institucional desse dia.
2. Diário da Assembleia da República, Sessão de 2024 sobre efemérides nacionais.
3. Idem; ver também crónicas de época e relatórios governamentais do VI Governo Provisório.
4. Documentação do EMGFA, 1974–1975. Ver também testemunhos de militares na Comissão de História da República.
5. Estudos sociológicos sobre conflitos no Norte em 1975; ver também arquivos da imprensa regional.
6. “Documento dos Nove”, Agosto de 1975. Arquivo da Biblioteca Nacional.
7. Testemunhos de Vasco Lourenço em entrevistas e debates organizados pelo Instituto de Defesa Nacional.
8. Relatos reunidos em obras de historiadores militares pós-1990.
9. História do Regimento de Comandos, Ministério da Defesa, ed. 2005.
10. Relatos recolhidos em entrevistas com oficiais dos Comandos nos anos 80 e 90.
11. Depoimentos de Jaime Neves e Ramalho Eanes; ver também documentação do Posto de Comando da Amadora.
12. Registos oiciais de baixas e comunicações militares, 25–26 Novembro 1975.
13. Comunicação televisiva de Melo Antunes, RTP, 26 Novembro 1975.
14. Estudos politológicos recentes sobre a relação MFA–PCP; ver também memórias de dirigentes comunistas.
15. Entrevistas de Ramalho Eanes (anos 90) sobre o balanço político do 25 de Novembro.
16. Arquivoda Assembleia Constituinte, 1975–1976.
17. Decreto de reorganização das Forças Armadas pós-1975.
18. Documentos preparatórios da entrada de Portugal na CEE, Ministério dos Negócios Estrangeiros.

 

foi há 50 anos: O PCP, a revolução, o PREC e o 25 de Novembro – o relato de quem viveu tudo por dentro

No início de 1975, tínhamos a revolução nas mãos. Todos os dias dávamos novos passos, cada degrau ultrapassado aproximava-nos dos nossos objectivos, abrindo-se um caminho imparável para o socialismo. O mais marcante desses dias era a sensação de que, ao contrário de outros, não andávamos à deriva, ao sabor do acaso. Sabíamos exactamente o que fazer, o que queríamos e quais os nossos objectivos, e todas as nossas acções enquadravam-se numa estratégia previamente definida. Cada um no seu sector dava o melhor de si para mobilizar a respectiva organização e canalizar a luta para a torrente comum da revolução.
A UEC (União dos Estudantes Comunistas, que Zita Seabra dirigia) tinha missões difíceis e lutas complicadas, a nossa vida não era fácil. Os metalúrgicos eram alvo da minha inveja, porque, agindo como um corpo, chegavam sempre seguros a qualquer lado, respondendo de imediato a todos os apelos. Nós, na universidade, tínhamos de estar nas lutas estudantis, enfrentar as greves dos esquerdistas e ajudar a fazer funcionar as universidades, desencadeando os saneamentos que considerávamos justos e protegendo os nossos professores da vaga de saneamentos levada a cabo pelos esquerdistas. Nada era fácil, pois os alunos que deviam ter entrado para o primeiro ano estavam a fazer serviço cívico e não tinham aulas, e foram instituídas desde o ano anterior em muitas faculdades as passagens administrativas em substituição dos exames (essa «avaliação da burguesia»), que garantiam aproveitamento em cadeiras que se arrastavam há anos. «Sociais-fascistas» era o mais simpático que nos chamavam. A orientação era, pois, sanear os professores fascistas, bem como os funcionários e os assistentes, algo complexo de definir, e deixar o resto funcionar. O MRPP, pelo contrário, queria as universidades paralisadas, chegando ao ponto de sanear todos os professores em Direito e aprovar um sistema em que os alunos se auto-avaliavam. De resto, todos os motivos eram bons para combatermos entre nós, e com tal garra que a Cidade Universitária era diariamente palco de cenas de violência, com mobília partida nas cantinas universitárias, além de muitas cabeças. Contra o MRPP e todos os outros movimentos esquerdistas, trotskistas e maoístas, gastávamos muito mais tempo a combater-nos mutuamente do que a fazer qualquer outra coisa. (…)

Nos partidos comunistas nunca se dizia, e muito menos escrevia, aquilo que eram os verdadeiros objectivos políticos do Partido: era mesmo frequente ser proclamada uma coisa que todos os funcionários percebiam significar o seu contrário. Tornou-se conhecida a frase com que os dissidentes soviéticos ilustravam a aplicação prática deste comportamento: «Os comunistas lutam tanto, mas tanto, pela paz no mundo, que não deixam pedra sobre pedra»

A revolução faz-se por saltos, não é uma auto-estrada, e eu sabia isso bem. Mas a revolução estava em curso e nós só queríamos que ela prosseguisse. [O 28 de Setembro] O 11 de Março, o Verão Quente, o cerco à Constituinte, o 25 de Novembro, e tudo o mais que se passou naquele meio ano, aconteceu exactamente porque o PCP, conquistada a liberdade e a democracia, decidiu passar à revolução socialista. Para isso era essencial não deixar o país avançar para um regime democrático nem para um Estado de direito, nem para uma democracia que respeitasse os resultados eleitorais. Mário Soares foi quem melhor o entendeu e combateu, juntamente com o PPD de Sá Carneiro. Também a Igreja Católica foi decisiva, pressentindo que a liberdade religiosa corria perigo em Portugal.

Caso o PCP não tivesse decidido avançar antes das eleições para a segunda fase da revolução socialista, gerando condições para um golpe militar e civil, o Verão Quente não teria existido. Depois das eleições livres de 1975, o país teria passado naturalmente à construção de uma democracia pluripartidária, os deputados teriam elaborado a Constituição e o Verão não tinha sido «quente», nem estaríamos no PREC. Se a intenção do PCP fosse consolidar a democracia plural, tê-lo-ia feito como fez em Espanha o PCE e como se fazia na Europa democrática. (…)

Tudo o que tínhamos feito até então fora em nome do ideal, da ideologia que abraçávamos, em nome do comunismo. Agora, quase um ano depois da conquista da liberdade, prosseguíamos coerentemente a luta pelo mesmo ideal.

A nossa força aparentava ser muito maior do que era na realidade: tínhamos de fazer um esforço enorme para que não se baseasse apenas nos militantes organizados, que eram a nossa vanguarda. Era no MFA que se decidia o fundamental e o nosso sector militar procurava organizar o melhor possível os militantes comunistas nas forças armadas, que tinham de assumir-se como vanguarda do proletariado. Influenciávamos o que podíamos. Tínhamos a força organizada possível e camaradas com pouca experiência política. Mas sabíamos para onde lhes dizer que fossem, e os ideais têm muita força.

Era fundamental nacionalizar as empresas e as terras para colectivizar os meios de produção. Não há socialismo sem colectivização da terra e das fábricas, e por isso tínhamos de abolir a propriedade privada. Tínhamos de prender os capitalistas detentores desses meios de produção, evidentemente. Se não eram conspiradores, poderiam vir a sê-lo, cientificamente, a qualquer momento. E, além do mais, se se prendessem uns quantos, outros fugiam com medo e assim era mais fácil concretizar a revolução. Foi assim na mãe Rússia, com muitos russos «brancos» a fugirem para Paris.

No seguimento do 11 de Março e com as nacionalizações a decorrer, os capitalistas presos eram os detentores dos monopólios já referenciados no Rumo à Vitória. O Copcon de Otelo e a Quinta Divisão de Varela Gomes não só prenderam gente com mandado de captura em branco como levaram pessoas por engano, à pressa para resolver o assunto, por razões tão inacreditáveis como a coincidência de terem o mesmo apelido sem serem da mesma família. O objectivo era prender os Mellos, os Espíritos Santos, os Champalimauds e os demais detentores de monopólios que, associados ao imperialismo, tinham garantido a sobrevivência do regime fascista. Eram conspiradores, fascistas, capitalistas, e foram presos porque existiam. (…)

Se o PCP não procurasse chegar rapidamente à revolução socialista nunca Portugal teria vivido o Verão Quente ou ficado à beira de uma guerra civil, como aconteceu. O PCP apenas recuou quando perdeu militarmente no 25 de Novembro.

Quem ao longo de todo este período conduziu pessoalmente o processo, dando-nos orientações que seguíamos sem hesitar, foi o Partido, foi Álvaro Cunhal. Fomos derrotados nalguns importantes objectivos de luta, como na unicidade sindical, mas não perderíamos a guerra. Tudo o que o PCP fez na rua, nas fábricas e nos campos, tudo o que disse ao país, tudo o que conspirou, organizou e planeou, tudo o que votou na Constituinte foi rigorosamente determinado por Álvaro Cunhal. Éramos um exército obedecendo ao seu general.

Nunca conheci qualquer contestação dos diversos sectores do PCP – militares, UEC, intelectuais, grupo parlamentar – às linhas de orientação definidas por Álvaro Cunhal. E o PCP nunca fez nada que ele não desejasse. (…)

Por tudo o que tinha feito, Cunhal simbolizava o ideal comunista. Ele era o PCP e o PCP era ele. Não precisávamos do seu retrato nas sedes, isso era para os líderes fracos. Como uma vez me fez ver, onde ele estava, estava a presidência. Dele emanava uma atracção especial que não deixava ninguém indiferente e que vinha da sua capacidade de liderança, da sua firmeza, da sua sedução. (…)

Nos dias que se seguiram ao 25 de Abril percebeu-se imediatamente que ninguém, civil ou militar, rico, capitalista ou pobre, reaccionário ou progressista, estaria disposto a resistir ou arriscar um golpe para que o país regressasse ao regime de Salazar ou de Caetano. O povo inteiro saiu à rua em uníssono para festejar a liberdade. Assim se viu no 1.º de Maio de 1974 e nos dias que se lhe seguiram.

Todavia, enquanto esta festa unânime era uma evidência para todo o país e para o mundo, logo a partir do 1.º de Maio de 1974 o PCP empenhou-se diariamente a anunciar conspirações, golpes iminentes, contragolpes reaccionários, de civis e de militares, grandes perigos para o regime democrático. O objectivo era criar a sensação de que existiam mil armadilhas para nos fazer regressar ao fascismo. Passava-se a noção de que o perigo nos espreitava em cada dia e ao virar da esquina.

O PCP mais não fez do que cerrar fileiras para passar por via armada ao socialismo. Daí que, em vez de se construir serenamente a democracia no país, se tenha passado rapidamente ao PREC. Foi Cunhal quem utilizou pela primeira vez a expressão PREC (Processo Revolucionário em Curso), querendo dizer que a revolução não acabava depois da queda do regime fascista: continuava, estava em curso, era um processo revolucionário que só terminaria na fase seguinte. «PREC» passou a ser uma expressão generalizada para caracterizar o período compreendido entre 11 de Março e 25 de Novembro de 1975. Mas, para o PCP, o PREC não terminou em Novembro de 1975. Até Cunhal se retirar e abandonar a vida política, o processo revolucionário esteve sempre em curso.

Durante aquele período, o país, ao caminhar para um Portugal socialista, idêntico a Cuba, à Checoslováquia ou à Roménia, esteve à beira de uma guerra civil. Logo a seguir ao 1.º de Maio de 1974, o objectivo imediato do Partido foi acelerar a revolução e tomar o poder. E o PCP não estava só, embora o MRPP, o MES, o PRP, o MDP e todos os outros grupos essencialmente estudantis se calassem rapidamente caso o PCP se conformasse com um regime democrático parlamentar idêntico a qualquer outro da Europa. Só que esses regimes, aos quais chamávamos «democracias burguesas», representavam precisamente aquilo que não desejávamos para Portugal e que passámos todo este tempo a tentar impedir que se instalasse definitivamente entre nós.

No 11 de Março, o PCP contava com a forte influência, directa e organizada, do primeiro-ministro Vasco Gonçalves junto de muitos militares. Tinha mais de 350 sedes no país e mais de mil funcionários, revolucionários profissionais, controlando quase todos os sindicatos. Tinha ideias fortes e mobilizadoras, sendo a mais apelativa de todas a ideia de fazer justiça a quem toda a vida tinha sido explorado, um proletário desde sempre. Agora era a hora dos proletários, a vez de fazerem justiça pelas suas mãos, de vingarem dores, fomes e humilhações, e de construírem um mundo melhor para si e para os seus filhos.

É inegável que o ideal socialista ganhara uma tal força, uma tal popularidade, que todo o país parecia desejá-lo e assumi-lo como bandeira, de tal forma que constava dos programas político-partidários da direita à esquerda e de qualquer panfleto do MFA. Ninguém se atrevia a não ser socialista e a não defender o socialismo como meta e objectivo nacional.

Porém, era também inegável que a ideia de eleições se impunha. Os portugueses queriam votar e sonhavam com eleições livres. Mário Soares e Sá Carneiro, entre outros, assim como diversos militares do MFA, compreenderam esse grande sonho popular. A vontade de eleições era inexorável e apresentava-se como forma de travar os intentos putschistas do PCP. O intento tinha uma tal força popular, que não era possível adiá-las mais. (…)

A nossa orientação era clara: ocupar empresas nacionalizadas, ocupar empresas abandonadas pelos patrões e saneá-los, bem como às chefias reaccionárias e cúmplices com o fascismo. Muita gente no país foi acusada de legionária, colaboracionista, bufo, membro da União Nacional, sendo pura e simplesmente saneada dos empregos em plenários de empresa. Os saneamentos diários eram lidos em diversos programas da rádio e muitas listas foram publicadas em jornais diários. As listas multiplicaram-se por todo o lado: nas empresas, nas universidades, na administração pública. (…)

Álvaro Cunhal, e nós com ele, tinha um sentimento de ódio profundo para com Mário Soares, mais do que para com qualquer político de direita. Mais do que a ninguém, por ser inequivocamente um homem de esquerda. Ele fez frente ao PCP com todos os meios ao seu alcance: aliando- se aos militares mais democratas e retirando-os da nossa influência, batendo-se sempre por eleições livres, fazendo o povo sair à rua quando era necessário e aliando todas as forças políticas à sua direita, civis e militares, colocando-os todos na rua contra nós. (…)

Quando o PS ganhou as eleições para a Assembleia Constituinte, o PCP não se pôs na defensiva. Continuou como se nada tivesse acontecido em Portugal, tentando reduzir as eleições e a Constituinte a um percalço sem importância. Na véspera das eleições intensificámos todas as formas de luta em todas as frentes. Logo a seguir ao acto eleitoral, respondemos ostensivamente na ofensiva, atacando Mário Soares. Tentando mesmo humilhá-lo, para que constasse. Quando Mário Soares, com Salgado Zenha e outros dirigentes do PS, se dirigiu à tribuna do Estádio 1.º de Maio, onde decorriam as festividades e onde se comemorava o que ali tinha acontecido um ano antes, não o deixámos entrar na tribuna. Não se lhe abriu a porta. Um major do MFA, Campos Andrada, que mais tarde foi promovido, barrou-lhe o caminho. Ele não ia entrar no palco para falar no Estádio 1.º de Maio. Aquele povo era nosso, e nós precisávamos dele. Na tribuna estavam, entre outros, o Presidente da República Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, para além dos dirigentes da Intersindical. Na véspera, o governo tinha aprovado o decreto da unicidade sindical. O argumento político usado para um marinheiro, militar do MFA, próximo do PCP, barrar o acesso à tribuna do secretário-geral do PS Mário Soares e de Salgado Zenha foi que não havia ali lugar para divisionistas. Eles tinham chegado com a manifestação dos que não queriam a unicidade sindical.

Álvaro Cunhal adorava este género de acções. Programava-as ao milímetro. Serem o MFA e os trabalhadores a fechar a porta da tribuna ao Dr. Soares, a não o deixar entrar, era dos momentos que mais o divertia. Ele que era contido, e em muitos aspectos tímido, não resistia a partilhar no bar da sede e a comentar divertido com as bases e com os funcionários a cara ou o gesto do seu inimigo de estimação. Era porém uma evidência que os «divisionistas» tinham acabado de ganhar as eleições seis dias antes. Não o deixar entrar foi um gesto emblemático, simbólico e cheio de significado político. Ambos os lados o entenderam. Com este gesto, que não pôde deixar de marcar Mário Soares e que foi também inesquecível para nós comunistas, procurou demonstrar-se quem era o inimigo principal, que não nos metia qualquer medo e que não tinha lugar na festa dos trabalhadores. (…)

Enquanto o PS nos fazia frente em Lisboa, o PPD de Sá Carneiro mobilizava o Norte, juntamente com o CDS de Freitas do Amaral, para não permitir o avanço da revolução socialista. O PCP encontrou, porém, uma forma de lhes fazer frente, aliás muito típica do comunismo: o ataque pessoal a Francisco Sá Carneiro. (…)

Mário Soares, Sá Carneiro e a Igreja Católica eram os inimigos a combater, sendo o PS e o PPD os adversários directos na acção política e na batalha ideológica. Portugal era um povo maioritariamente católico, e nem a extinção das ordens religiosas nem a perseguição no tempo da República tinham resultado na diminuição da influência da Igreja.

Tentava-se que a Igreja ficasse nos templos e se limitasse ao culto sem interferir na vida política nacional. Mas a Igreja tinha a Rádio Renascença, sendo que uma das condições para a vitória da revolução era o controlo dos órgãos de comunicação social. Uns nacionalizaram-se e foram mandados para lá militantes pôr ordem na casa, como o Diário de Notícias com José Saramago, outros foram encerrados à força, como O Século, e noutros ainda seguiu-se a táctica clássica de arrancar com uma «luta dos trabalhadores contra o patronato». Assim foi no República e na Renascença. Um era afecto ao PS e o outro pertencia à Igreja Católica. Na Rádio Renascença, que era uma voz importante e muito credível no país, com enorme audiência, começou uma «justa e exclusiva» luta dos trabalhadores pelos seus direitos laborais (com um único militante do PCP, tendo a UDP feito o resto). (…)

No que diz respeito à Igreja, tínhamos de lhe fazer frente sem permitir que nos acusassem de qualquer sentimento anticlerical ou anti-religioso que pudesse impressionar o povo português. Tudo o que fizéssemos que pudesse ter essa conotação, como a ocupação da Renascença, tinha de ser feito de forma a que não se percebesse que éramos nós os responsáveis. Se havia uma questão política em que sabíamos distinguir claramente a táctica da estratégia (aplicando a conceptologia marxista), era essa. (…)

Além destas três grandes forças (Mário Soares, Sá Carneiro e a Igreja Católica), tínhamos pela frente o MRPP em particular, e muitos outros em geral, como a UDP, o PCP (M-L), a AOC, etc., alguns dos quais tinham conquistado sindicatos importantes. A AOC tinha os Químicos, o MRPP tinha a TAP, entre outros. De todos eles o MRPP era sem dúvida o mais aguerrido e violento, mas para nós eles não eram mais do que filhos da burguesia ao serviço da reacção e da CIA. A violência do MRPP contra nós agudizou-se brutalmente neste período. De ambos os lados exigia-se muita coragem para enfrentar as cenas diárias de violência. (…)

Para nós, o MRPP, onde militavam pessoas como José Manuel Durão Barroso, Margarida Sousa Uva, Saldanha Sanches ou Maria José Morgado, era a principal arma da direita reaccionária e do imperialismo da CIA (que infiltrara o movimento) usada contra nós, comunistas. Aparecia sempre para radicalizar as lutas de tal forma que virava toda a gente contra a revolução.

Se conseguíssemos continuar a concretizar os objectivos fundamentais da revolução democrática e nacional, a caminhada para o socialismo tornar-se-ia irreversível. Esta foi a tese central que durante todo o Verão Quente explicámos aos militantes. A irreversibilidade das alterações económicas verificadas, o caminho seguro para a colectivização dos principais meios de produção, a abolição da exploração do homem pelo homem, vinham criar as condições objectivas para o Portugal socialista. Depois disto competia ao Partido conseguir as condições subjectivas, isto é, a insurreição armada vitoriosa para o socialismo.

Desde que conseguíssemos colectivizar os principais meios de produção, a revolução socialista podia demorar dias ou anos, mas aconteceria seguramente. O marxismo-leninismo era uma ciência: a lei da humanidade e do seu progresso descoberta por Marx e Engels e confirmada por Lenine. (…)

Começava a ficar cada vez mais claro que a luta se ia agudizar, que se organizava com demonstrações de força, assinalando a respectiva influência militar, contando espingardas, demonstrando força nas ruas e nas manifestações.

Só com a demissão de Vasco Gonçalves de primeiro-ministro (a 30 de Agosto) e a famosa Assembleia Geral de Tancos (a 1 de Setembro), na qual foi exonerado de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e com o célebre Documento dos Nove, comecei a perceber que a situação estava a tornar-se perigosa para nós. Desde o 25 de Abril que tudo se resumia às provocações da direita reaccionária contra as forças progressistas, a aliança Povo/MFA a fortalecer-se, as grandes conquistas do processo revolucionário, tudo se repetia sempre, os pontos políticos eram sempre iguais e não era possível entender a cada momento o que se passava exactamente e qual era exactamente a verdadeira correlação de forças. Eu procurava ler a situação nos sinais que iam chegando, mas que por vezes eram brutais e inesperados, como o «Caiu o camarada Vasco!». Em dois dias perdemos o essencial do poder que nos dava segurança para a luta futura. Perdemos o camarada Vasco, a nossa «muralha de aço».

Todos nos apercebemos de que estávamos a perder terreno no próprio MFA a olhos vistos. Nem a aliança com os esquerdistas, que tanto irritou a UEC, para melhorar a correlação de forças no MFA, nem a multiplicação, nas vésperas do 25 de Novembro, de encontros secretos de Cunhal com militares – que eu saiba e tivesse ajudado a organizar, com Costa Gomes e com Otelo –, nos sossegou. Os camaradas que eu controlava começaram a desconfiar dos meus «pontos políticos», mas eu limitava-me a repetir o que me era transmitido.

Subitamente, tudo se precipitou e tudo acelerou em função, não da correlação de forças na rua, mas da estrita correlação das forças militares. Quem era fiel e a quem. De ambos os lados preparava-se o embate decisivo, determinante. Percebi-o claramente. (…)

Finalmente, a 11 de Novembro, dia da independência de Angola, o Parlamento foi cercado por ordem do sindicato da construção civil. O facto de ter sido a construção civil não foi por acaso. Era um grande sindicato que não fazia parte da Intersindical e que estava em luta, numa justa luta de um dos sectores mais explorados dos trabalhadores portugueses. Assim, não nos poderiam acusar objectivamente de promover o cerco à Constituinte. Foi porém o gesto mais simbólico que antecedeu o 25 de Novembro: cercar a Assembleia Constituinte, eleita nas primeiras eleições livres depois do 25 de Abril. (…) [Os deputados do PCP] saíram do cerco debaixo de aplausos, enquanto todos os outros saíram com apupos.

Era evidente que nesse mês de Novembro de 1975 a revolução se iria clarificar. Ou dava um salto, ou recuava. Era impossível manter a instabilidade em que vivíamos e era evidente que estávamos em grande recuo e em grande perda de posições estratégicas. Poder-se-ia repetir outro 28 de Setembro, outro 11 de Março? Nunca como naqueles dias que antecederam o 25 de Novembro estive tão completamente consciente de que podíamos ir todos parar à cadeia se a reacção ganhasse, podíamos ser ilegalizados, e o camarada Cunhal corria o sério risco de ser preso. Avançar e já, antes que seja demasiado tarde, era a sensação daqueles dias. Pouco antes tinham sido criados os SUVs (Soldados Unidos Vencerão), para juntar aos oficiais e dar ao MFA uma maior perspectiva de classe. Mas os SUVs acabaram por só impressionar numa conferência de imprensa onde apareceram encapuzados: não eram a garantia da vitória, por muito que os soldados e marinheiros o tivessem sido noutras revoluções. Eram necessárias chefias das unidades. Desde há muito que se contabilizavam fidelidades por quartéis e por ramos das forças armadas, por chefias militares do MFA. A 24 de Novembro colocámos os estudantes da UEC nas casas previstas e eu disse-lhes que aguardassem ordens, que a situação era muito grave. Ficaram quietos à espera. Eu andei entre a sede do PCP e as casas, acompanhando com grande ansiedade o evoluir da situação militar. Mais do que as palavras, via a cara e a expressão, durante aquelas longas horas, do Carlos Brito e de Álvaro Cunhal.

A segurança estava pronta a levar o nosso secretário-geral para local seguro, connosco disponíveis para passar à clandestinidade, se perdêssemos.

Na minha perspectiva, íamos avançar nessa noite decisivamente para impedir um golpe que se preparava na direita, um golpe do Grupo dos Nove, braço do PS e da direita. Contávamos as unidades que estavam do nosso lado. Quando os pára-quedistas avançaram, na madrugada de 25, e o Ralis saiu, contámos as espingardas e as fidelidades – e a revolução socialista pareceu-me próxima. Os camaradas davam-nos confiança. O Presidente da República não era obstáculo. Era agora ou nunca. Ontem era cedo, amanhã seria tarde de mais. A organização aguardava nas casas e nos pontos previstos, e em frente à sede do PCP juntou-se uma multidão de militantes. Quando chegaram as notícias da viragem dos pára-quedistas, e do avanço dos Comandos de Jaime Neves, eu temi o pior.

Chamaram-me para receber uma informação e mandaram desmobilizar tudo e todos imediatamente, confirmando que os pára-quedistas tinham virado, que tinham passado para o outro lado, que os Comandos estavam na rua e que só a Marinha se mantinha fiel à revolução – e só com a Marinha não se podia ganhar uma revolução. Vivi momentos verdadeiramente dramáticos. Fui desmobilizar os UECs, mandá-los simplesmente para casa. Tivemos a sensação de derrota como não havíamos tido antes e sentimos que ia demorar muito tempo até voltarmos à mesma conjuntura, a outra oportunidade como aquela, que nos trouxe tão perto da vitória. Cunhal falou aos funcionários que ali estavam e disse duas coisas que gravei na memória: que teve garantias de Melo Antunes de que não ia ser preso e que o PCP não ia ser ilegalizado. E recordou a obra de Lenine, Um passo atrás, dois passos à frente, escrita nas vésperas da revolução de 1905. Íamos dar um passo atrás para no futuro podermos dar dois passos à frente.

Com a correlação de forças no terreno, não havia outro desfecho possível. A rápida saída do coronel Jaime Neves, a intervenção do general Ramalho Eanes e a determinação do Grupo dos Nove convenceram os pára-quedistas a passar para o lado deles. Explicámos aos militantes o recuo, dando o exemplo do Sudão, onde o Partido Comunista tinha promovido recentemente um golpe de Estado sem medir bem as forças e tudo se tinha transformado numa chacina de comunistas, sendo necessários muitos anos para se voltarem a recompor. Eu e muitos dos UECs ficámos furiosos com esta ordem tão rápida de recuo. Porquê desistir logo assim? Durante os dias seguintes choveram as explicações e sobretudo as contas a quantos estavam de cada lado. Não restava outro caminho. O MFA acabou e o PREC também. Fomos para casa.

Os portugueses, militares e civis, não queriam que corresse sangue, que houvesse uma guerra civil. Queriam paz e democracia e orgulhavam-se da sua revolução pacífica dos cravos. Sonhavam com cravos e não com G3. Os militares, de Eanes a Jaime Neves, de Melo Antunes a todos os outros do Grupo dos Nove, tinham feito o 25 de Abril e não tinham como modelo a revolução russa. Decididamente. Eram militares patriotas, orgulhosos de terem virado as espingardas. Muitas vezes tive a sensação de que ficavam fascinados connosco, por termos estado no terreno, termos lutado contra o regime de uma forma inquestionavelmente corajosa. Respeitavam-nos e queriam entender-nos também, para não serem apanhados novamente no lado errado. Mas quando a questão se colocou, a necessidade de nos travar o passo para impedir que Portugal caminhasse para o comunismo, muitos fizeram-no corajosamente. Mesmo Costa Gomes, que hesitava frequentemente e que era sensível às pressões que lhe fazíamos, por vezes mesmo através de recados do seu filho Francisco, não hesitou desta vez em estar do lado contrário ao nosso. Só depois de sair de presidente, e particularmente após a morte do filho, se deixou usar como bandeira de um comunismo decadente e em extinção, integrando o Conselho Mundial para a Paz. Mereceu-me porém sempre respeito pelo drama humano que viveu.

A 26 de Novembro foi dissolvido o Copcon. Foram presos cerca de duzentos militares, entre eles Varela Gomes. Era fácil entender que saneavam a nossa gente e os nossos aliados. A 27 de Novembro, Carlos Fabião e Otelo Saraiva de Carvalho foram substituídos como chefe do Estado-Maior do Exército e comandante do Copcon, sendo também pedida a sua demissão do Conselho da Revolução. Melo Antunes comunicou ao país que o Partido Comunista Português não seria ilegalizado e era mesmo indispensável. António Ramalho Eanes foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército e o PC ficou no VI Governo Provisório. A Rádio Renascença foi devolvida à Igreja.

As revoluções não se fazem por decreto, nem quando começam nem quando terminam. A revolução tinha acabado. Depois do 25 de Novembro, levámos um ano a recompor-nos do choque da derrota. Só um ano depois teve lugar o VIII Congresso do PCP, altura em que entrei para o Comité Central. A linha política deste congresso vem definida num documento de Cunhal intitulado A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro, em que se explica aos militantes que ainda estamos no processo revolucionário em curso e que as conquistas da revolução são irreversíveis. Em que se escondem ou ignoram os factos, portanto. 

O 'mistério' do 25 de Novembro de 1975

É sabido: no dia 25 de Novembro de 1975, no final do período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril, Portugal esteve à beira de uma guerra civil. Depois de um período de disputa pelo poder político-militar, que abrange todo o Verão de 1975, as forças democráticas (PS, PSD e CDS, na ala partidária, os moderados do Movimento das Forças Armadas, o MFA, liderados pelos Grupo dos Nove, e a Igreja Católica), que lutavam por uma democracia do tipo europeu, e as forças pró-comunistas (PCP, extrema-esquerda e a Esquerda Militar), que procuravam impor ao País um regime autoritário próximo do dos países comunistas, enfrentaram-se em Lisboa. Venceram os moderados e o caminho para a democracia foi reaberto. Mas a data, isto é, o "quem é quem" e o "quem faz o quê" nos acontecimentos que levaram os radicais do MFA a marchar com a unidade pára-quedista de Tancos sobre a capital e as principais bases aéreas em seu redor, ainda permanece envolto em "mistério". E nem um simples e linear raciocínio de mediana inteligência desata, 30 anos depois, esse "mistério". O "mistério" resume-se a uma pergunta: é, ou não, o PCP, com o apoio operacional da Esquerda Militar, a organização que avança para o confronto e porquê? Têm-se colocado dúvidas sobre a coerência (ou a "incoerência") de um plano militar "tão frouxo" como o dos revoltosos de Tancos. E, no plano político, sobre as verdadeiras intenções e acção do PCP nessa data. Em suma, perguntam os que alimentam esse "mistério": como poderia o PCP avançar para uma tentativa de mudança do poder político-militar com tal plano militar tão débil? E que quereria ele fazer, de facto, um golpe militar, tomar o poder? As respostas, mesmo com base em depoimentos que não incluem as "memórias" do PCP, são, para mim, simples. Era o plano militar de quem comandava o 25 de Novembro frouxo? Não. Qualquer aprendiz de militar verifica que uma acção de ocupação do quartel-general (QG) operacional da Força Aérea e das suas principais bases aéreas operacionais não é um plano qualquer. É um plano inteligente e necessário para fazer de novo bascular a balança do poder para a esquerda pró-comunista. Porquê? Porque, estando a principal força de actuação - o Exército - maioritariamente dominada pelos moderados, só o desequilíbrio dos restantes dois ramos das Forças Armadas - Marinha e Força Aérea - poderiam impor ao Exército um realinhamento político-militar e impedir uma eventual acção deste para repor a ordem no País. Tomar o comando da Força Aérea e as suas principais bases significava, "apenas", subtrair ao Exército o seu principal apoio. E era também uma forma de incitar e libertar a Marinha - nomeadamente os fuzileiros - para uma acção ao lado dos radicais. Que falhou neste plano militar? Duas coisas. Uma, e muito importante, o alinhamento do então comandante operacional do Copcon (QG operacional do MFA), general Otelo Saraiva de Carvalho, ao lado dos pára-quedistas (isto é: da Esquerda Militar). Otelo, que o PCP mais voluntarista contava como aliado e comandante militar "independente" para o golpe, foi para casa nessa madrugada, deixando os revoltosos sem um comando visível (e daí o ódio, que ainda hoje persiste, do PCP a Otelo). Outra, a acção do presidente da República, general Costa Gomes, que se opõe sinceramente a uma guerra civil e dá ordens de fidelidade hierárquica a unidades e cobertura aos militares moderados. Que falhou no plano político? Otelo e Costa Gomes, de novo. O general Otelo Saraiva de Carvalho, comandante operacional do MFA no 25 de Abril, fora preparado, depois de Março de 1975, para ser o "grande líder" da revolução. É namorado pelo PCP e por Cuba. Tem encontros a sós com Cunhal e Fidel Castro convida-o repetidamente para visitar a ilha. Otelo acaba por lá ir em Julho. É recebido como um herói, é-lhe incentivado um papel de caudilho. Otelo regressa aparentemente convencido, diz que vai mandar os "contra-revolucionários" para a praça de touros do Campo Pequeno e é portador de uma mensagem de Fidel para Costa Gomes anunciando a intervenção cubana em Angola. Mas, depois, Otelo falha sempre: não apoia o primeiro-ministro comunista Vasco Gonçalves nem os pára-que- distas. Costa Gomes também "falha". Deixa Cuba avançar em Angola, até porque Portugal era frágil aí. Mas não dá possibilidade ao golpe do 25 de Novembro de avançar em Lisboa. Homem da Guerra Fria e estratego inteligente, deixa Angola para as superpotências e Portugal para a NATO. Um mês antes do 25 de Novembro, o líder soviético Leonid Breznev, numa conversa a sós de quatro horas, em Moscovo, explicara-lhe que a União Soviética não combateria os EUA na Península Ibérica. Por isso, a primeira preocupação de Costa Gomes, na manhã do 25 de Novembro, é falar com Cunhal e o seu braço popular (não armado, mas armável), a Intersindical. Cunhal aceita, mas ganha tempo para negociar o futuro, sem grandes perdas para o PCP. Dir-se-ia não haver depoimentos ou provas suficientes do que afirmo. Mas há. Não se conhece tudo, mas o que se apurou, nestes anos de investigação e de recolha de relatos, é suficiente. José Manuel Barroso, Jornalista

foi o fim do PREC

 




e se eles tivessem sido endrominados pela gajada de tancos?

E se os “páras” de Angola tivessem aderido?

De tudo o que entre as 09:00 e as 13:00 da manhã daquele dia 23 de Novembro se passou no cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, a mais forte lembrança que guardo é um misto de duas coisas: os lancinantes apelos com que 200 paraquedistas tentam aliciar/persuadir outros 500 a aderir à causa sediciosa em que se meteram e a imperturbável impavidez dos destinatários dos apelos.

Os 200 estão concentrados em cacho, na plataforma do cais. É nítida a ansiedade que deles tomou conta – uma ansiedade revolta – e a forma como se apresentam, no atavio e nas maneiras, em nada se confunde com o garbo vaidoso das tropas paraquedistas. Faz dias que se sublevaram no seu quartel de Tancos, a seguir saneando aqueles que com eles não alinharam.
Os 500 estão na sua maior parte espalhados pela amurada do velhinho “Niassa” que os transportou de Luanda. Eles e outros tantos, na sua maior parte fuzileiros e dragões de cavalaria, estes viajando no “Uíge”, chegado na mesma altura, era tudo o que sobrava do dispositivo militar português em Angola até ao entardecer do dia 10 de Novembro de 1975, poucas horas antes da proclamação da independência da nova nação.

A crise político-militar, chamavam-lhe assim, em que Portugal vivia cronicamente mergulhado, havia-se exacerbado significativamente por aqueles tempos. A sublevação dos “páras”, afloramento maior do ambiente revolucionário que há meses sacode as Forças Armadas, reduzindo a cacos a disciplina militar, é lida por muitos como primeiro passo de um putsch que parece estar para acontecer.
É o que transparece de pronunciamentos como um, de Mário Soares, feito na véspera de 23. À saída de um encontro com o primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, diz que não se sentará com o PCP, assim contrariando uma sugestão do seu interlocutor, “enquanto o PCP continuar, pela força, a querer conquistar o poder”. Seguem a mesma linha afirmações de Melo Antunes numa entrevista ao Nouvel Observateur: “o PCP quer tomar o poder pela força”.

Foi uma vantagem ter acompanhado “ao vivo” os acontecimentos daquele dia 23 no cais da Rocha do Conde de Óbidos, ainda por cima nas vestes de jornalista. A agenda desse dia do antigo “Jornal Novo”, onde então trabalhava, destinara-me “aquilo” como serviço. O que se via a olho nu e o que se conseguia apurar em indagações com este e aquele era elucidativo. Os sublevados dos cais agiam em nome de uma causa em que tudo jogavam.

Precisavam a todo o custo de convencer os camaradas do “Niassa” a irem com eles para o seu “reduto” sublevado de Tancos, propósito em nome do qual haviam levado para ali dezenas de autocarros. Era “fundamental para a revolução”, dizia um dos sublevados, enquanto outro, esmiuçando o pensamento do que o antecedera, explicava que dessa maneira “faremos pender para o lado correcto o prato da balança da revolução”.
Ao fim de quatro horas, aqui e ali marcadas por momentos dramáticos, entre eles, por volta das 11:00, uma ululante manifestação dos sublevados destinada a impedir que o “Niassa” desatracasse para fundear a meio do rio (era o que lhes tinha constado, embora não se tivessem visto sinais disso), eis que os “páras” de Angola finalmente desembarcam. Fazem-no em boa ordem, cada um deles trazendo a tiracolo a sua “Armalite AR-10”. O destino que os espera não é Tancos, mas sim a Ota, para onde seguem em dezenas de Berliets militares também estacionadas no cais. 

A RTP registou
os lancinantes apelos com que 200 paraquedistas tentam aliciar/persuadir outros 500 a aderir à causa sediciosa em que se meteram e a imperturbável impavidez dos destinatários dos apelos.
O comandante dos “páras” de Angola é um tenente-coronel, Ramos Gonçalves. O mérito do “milagre” a que acabara de se assistir na Rocha do Conde de Óbidos não é estranho a um esforço por ele exercido no sentido de os prevenir para a “aventura” que seria a sua adesão aos sublevados. A parte de leão do mérito, essa é, porém, devida a um outro oficial páraquedista que também vem a bordo: o general graduado Heitor Almendra.
É destinada a ele uma carta escrita à mão que o general Morais e Silva, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, pede aos pilotos da barra que entreguem no “Niassa” quando ainda de madrugada o seu barco dele se aproximar para o guiar até aos cais. O que lhe pede, depois de o avisar do que está montado no cais, é que faça o seu melhor para manter afastados daquilo os “páras” embarcados.
O transmontano Heitor Almendra é um dos mais prestigiados oficiais páraquedistas – aura advinda de uma rica folha de serviços, iniciada em 1956 em Timor. Em 1961, já como capitão, é o comandante de uma companhia de páraquedistas enviada de emergência para Angola. Moçambique e a Guiné também virão a fazer parte do seu roteiro militar, mas é por Angola que se detém por mais tempo.
O que mais deve ter pesado na escolha de Morais e Silva para fazer dele destinatário da carta que faz chegar ao “Niassa” – também vem abordo o último alto-comissário em Angola, almirante Leonel Cardoso e o secretário-geral do governo, tenente-coronel Gonçalves Ribeiro – foi, sem dúvida, o seu poder de influência, parte dele advindo do seu destemido desempenho como comandante do COPLAD (Comando Operacional de Luanda), criado em Outubro de 1974 com a missão de velar pela segurança na cidade.
Entre as novidades naquele dia apanhadas pelos jornalistas no cais há uma segundo a qual “gente da Marinha”, usando meios técnicos que tornavam isso possível, havia dias que pusera em marcha algumas acções destinadas a convencer os “páras” do “Niassa” a aderir à causa da revolução”. Talvez por não haver a certeza do que fariam ante o pungente espectáculo montando no cais, Morais e Silva terá visto em Heitor Almendra o homem certo para a circunstância.
Tomar o poder pela força é, dizem os manuais, é fazê-lo manu militari. Se a amotinação dos “páras” de Tancos, imbricada com outras irrompidas em várias unidades do Exército e da Armada, podia ser lida como fazendo parte de um golpe destinado a tomar o poder pela força, o que será que poderia ter acontecido se os “páras” de Angola, constituindo no seu conjunto uma força experiente e com elevado poder de fogo, tivesse aderido? 
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Conta-se, sabendo-se que quem conta sabe o que diz (p.ex, Zita Seabra, no seu ”Foi Assim” e em várias intervenções públicas), que o PCP, comprometido com um golpe em preparação, se descomprometera a tempo de não passar por implicado. O momentum em que tal aconteceu não terá sido aquele em que se tornou evidente que os “páras” do “Niassa” seguiram outro caminho?
A fuga em frente em que na manhã de 25 de Novembro os sublevados de Tancos e outros mais se lançam, ocupando as bases aéreas do Montijo e Monte Real e várias instalações da Força Aérea, já não podia ser obra do PCP. O desespero de causa que tudo aquilo transmite não reflecte o calculismo e a compostura do PCP. Muito menos a oportunidade então oferecida “à outra parte” para um contragolpe destinado a acabar de vez com a “bagunça” que tomara conta do país.



hoje! Há 50 anos,


 

onde é que estavas no 25 de Novembro?

 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

um ano depois: o jornalista empenhado

Manuel Carvalho o alegado jornalista que
defende que “em causas que estão sob ameaça dos programas de Donald Trump ou de André Ventura, o jornalismo não pode ser neutro” – ou seja, deve ser empenhado, para não dizer militante.